segunda-feira, 25 de agosto de 2014

Banda: Beat Circus; Álbum: Dreamland

Banda: Beat Circus
Álbum: Dreamland
Ano: 2008
Gênero: Cabaré, experimental


Em 1904, foi fundado um enorme parque de diversões na cidade de Nova York. O parque se chamava Dreamland (Terra dos Sonhos) e continha uma enorme variedade de atrações, que iam desde os tradicionais domadores de leões até uma inteira vila "lilliputiana" com nada menos que 300 anões (!!) e uma inusitada exposição de bebês em incubadoras – como os hospitais ainda não confiavam totalmente no equipamento, uma família de circenses resolveu testá-los em seus próprios filhos, trigêmeos prematuros. O parque possuía uma enorme torre, mais de um milhão de lâmpadas e muitos outros superlativos.


Apesar de toda a pompa e beleza, o Dreamland teve um destino trágico: um enorme incêndio em 1911 engoliu o parque, e a história do enorme parque terminou por aí (nota: os bebês das incubadoras foram salvos, mas, infelizmente, um dos leões não teve a mesma sorte e foi morto a tiros pela polícia novaiorquina enquanto corria solto pelas ruas).

A trágica história do parque de diversões foi absorvida pela cultura pop e inspirou diversos relatos, reportagens, romances. Inspirou, também, um compositor chamado Brian Carpenter, a mente por trás do Beat Circus e, consequentemente, por trás deste álbum. Falemos um pouco, então, deste peculiar projeto.

A história da "banda", se é que o termo se aplica, teve começo em 2001, quando Carpenter se mudou para Boston para dirigir um documentário sobre a vida de Albert Ayler, um dos saxofonistas mais extremos e peculiares do free jazz (aliás, seu disco Spiritual Unity, de 1964, é belíssimo). Ele conheceu o banjoísta Brandon Seabrook, que lhe apresentou alguns músicos, e juntos eles criaram um projeto musical que se firmava em músicas circenses e improvisação. Originalmente chamado de Beat Science, o projeto foi rebatizado de Beat Circus e lançou seu primeiro álbum, Ringleaders, em 2004, contendo o tipo de material descrito nas linhas anteriores.

Em 2005, o som do Beat Circus sofreria uma guinada radical em seu estilo. Carpenter começou a escrever um conjunto de músicas que totalizavam 150 páginas de partituras com letras, uma mudança bastante significativa. A obra era baseada na trágica história do parque Dreamland, tanto musicalmente, com sua sonoridade de cabaré e pré-jazz, quanto liricamente, com referências a fatos e personagens. Para executá-la, Carpenter incrementou a formação original do Beat Circus com novos integrantes, resultando em um grupo de nove pessoas. Além disso, como se o projeto já não fosse ambicioso o suficiente, anunciou que Dreamland era a primeira parte de uma trilogia denominada Weird American Gothic – embora não se saiba exatamente qual seja seu fio condutor, visto que não há nenhuma ligação entre Dreamland e o álbum seguinte, Boy From The Black Mountain. Mas vamos às faixas.

A abertura Gyp the Blood é instrumental e tem um ambiente misterioso e antigo, instigando o ouvinte e convidando-o a desvendar o que vem pela frente. É o grupo se apresentando: percussão, banjo, cordas e metais vão surgindo aos poucos, e antes que se perceba estão enchendo os ouvidos.

O apito do trem junta a faixa anterior a The Ghost of Emma Jean. A faixa truncada, que nunca parece chegar a um desdobramento com seu banjo insistente e suas cordas em staccato. Quando os vocais do próprio Carpenter entram, entendemos: a faixa conta a história de Emma Jean, uma garota que morreu atropelada por um trem e agora vive do sombrio ofício de assombrar sonhos. Ao final, uma gaita simula os apitos do  trem enquanto o fantasma, interpretado por Orion Rigel Dommisse, canta um sinistro la la la.

O curto e sombrio interlúdio Hypnogogia anuncia uma das melhores faixas do disco: Delirium Tremens. O título da música é uma referência ao termo usado para descrever os sintomas da abstinência de álcool em alguns dependentes: delírios, pesadelos, tremedeiras e outras tantas coisas desagradáveis. O andamento lento e sinistro, as escalas no banjo, a percussão e as cordas fantasmagóricas fazem o pano de fundo para a voz teatral de Carpenter cantar sofrida. No refrão particularmente viciante, em que o título da música é cantado por um coro, entra um acordeon e tudo ganha um tom especialmente tragicômico. Sensacional.



Lucid State é mais um interlúdio, que tem uma pegada meio nuevo tango, parecida com as músicas compostas por Glover Gill e executadas pela Tosca Tango Orchestra para a trilha sonora do ótimo filme Waking Life (se você não assistiu, assista!). Ela abre alas para a sombria Death Fugue, que tem uma pegada totalmente heavy metal apesar da falta de guitarra e distorções. Os vocais em harmonia, os violinos quase diabólicos ao fundo e o estouro no meio da música são puro rock and roll.

The Good Witch é mais um filler, com uma voz feminina fazendo vocalizações com um teclado ao fundo. Em seguida, a valsa triste Dark Eyes é anunciada por uma longa introdução ao violino, e nos sentimos no casamento de Connie Corleone no primeiro filme da trilogia O Poderoso Chefão. Belíssimo tema.

A delicadeza e lirismo da valsa morre subitamente na frenética Slavochka, com seu dueto furioso entre violino e trompete. A melodia e o andamento enganam o ouvinte e fazem parecer que a canção nasceu do mesmo vilarejo romeno de onde saiu o Taraf de Haïdouks, e é muito fácil imaginar uma trupe cigana dançando fervorosamente. Nem mesmo as mudanças de andamento e compasso descaracterizam esta ótima composição, que é um dos grandes momentos do álbum.




The Gem Saloon é interessantíssima, com uma pegada meio Tom Waits. Entre a voz de Carpenter e a das garotas que cantam o refrão, ouvimos muitas camadas diferentes de instrumentos e, pela primeira vez, um solo de guitarra (slide guitar, para ser mais preciso).

Após o interlúdio El Torero, que é basicamente um solo de trompete tocado pelo próprio Carpenter, temos a valsa flamenco-circense The Rough Riders, com suas diversas mudanças rítmicas, passando do andamento quase embriagado até um empolgante flamenco. Um momento um pouco morno, mas não menos bonito.

Coney Island Creepshow é bastante teatral. Começa com o anúncio de um apresentador de circo da grande atração: o show de aberrações e é evidente que o clima circense domina a canção, que remete totalmente à música de cabaré. Além de Carpenter, DJ Hazard e M. McNiss também cantam, e os três vão se alternando verso a verso. Divertida, mas não é um destaque.

Hell Gate é bizarríssima, misturando muitos fragmentos em seus 2:37 de duração. Música circense "fora de rotação", um curto momento meio Fantômas, interrupções inesperadas, corais sinistros, música balcânica – tudo está aqui. O interlúdio – se é que podemos chamá-lo assim – mais interessante do álbum.

Meet Me Tonight In Dreamland representa o momento em que o circo pega fogo - literalmente. É um dramático solo de piano com efeitos sonoros ao fundo, que logo para e dá lugar ao som de fogo e gritos. Quando tudo parece acabar, um último solo no melhor estilo "saloon" encerra tudo.

O álbum encerra com March of the Freaks, que começa após um minuto de silêncio. Alguns suspiros meio "beat box" quebram o silêncio, e uma última melodia circense finaliza a primeira etapa da trilogia de Brian Carpenter.

Dreamland é um álbum interessantíssimo e tem alguns momentos verdadeiramente brilhantes, como Delirium Tremens e Slavochka, mas o final é um pouco anticlimático. De qualquer maneira, vale a pena conhecer a trupe de Carpenter e suas impressionantes habilidades. O melhor de tudo é que o álbum todo pode ser ouvido gratuitamente neste link, que traz também a lista de participantes em cada uma das músicas.

Tracklist:
1. Gyp The Blood
2. The Ghost of Emma Jean
3. Hypnogogia
4. Delirium Tremens
5. Lucid State
6. Death Fugue
7. The Good Witch
8. Dark Eyes
9. Slavochka
10. The Gem Saloon
11. El Torero
12. The Rough Riders
13. Coney Island Creepshow
14. Hell Gate
15. Meet Me Tonight In Dreamland
16. March Of The Freaks

segunda-feira, 18 de agosto de 2014

Artista: Holger Czukay; Álbum: Movies


Artista: Holger Czukay
Álbum: Movies
Ano: 1979
Gênero: Art rock, avant-garde


Após três resenhas de álbuns bastantes recentes, vamos voltar ao ano de 1979 para falar de Movies, primeiro álbum solo do multi-instrumentista alemão Holger Czukay. Mas antes, é importante falar da banda da qual antes ele fazia parte: Can.

Entre os fãs de música experimental e krautrock, o Can é considerado um grande expoente. A banda nasceu no final dos anos 60 em Köln, Alemanha Oriental. O maestro e pianista Irmin Schmidt havia viajado para os Estados Unidos e, durante sua estadia, desenvolveu um novo relacionamento com a música e com a arte em geral. Passou bastante tempo em companhia de músicos avant-garde, conheceu o trabalho de Andy Warhol e se encantou com o Velvet Underground. Tudo isso, segundo ele próprio, foi crucial para sua formação musical, que até então fora um tanto restrita à música erudita.

Em 1968, Schmidt retornou para Köln e resolveu montar uma banda para explorar sua revigorada educação musical. Entrou em contato com o flautista norte-americano David C. Johnson e com o então professor de música Holger Czukay. Logo, o grupo seria acompanhado pelo jovem guitarrista Michael Karoli e pelo baterista Jaki Liebezeit. Johnson, que era da escola de música erudita de vanguarda, sentiu-se insatisfeito com o som mais roqueiro da banda e deixou o grupo, e assim foi formada a base do Can.

Uma vez definido o line-up, eles entraram em contato com o vocalista e escultor norte-americano Malcolm Mooney, que se juntou à banda e participou do debut Monster Movie, de 1969 (nota: o Can chegou a gravar um disco antes deste, chamado Prepared to Meet Thy Pnoom, mas não conseguiu acordo com nenhuma gravadora para lançá-lo na época). O álbum é uma viagem e traz diversas características que seriam comuns aos registros posteriores e ao gênero que seria batizado de krautrock ("rock chucrute") pela imprensa britânica: experimentalismo, improvisações, muitos efeitos de estúdio e texturas.

No ano seguinte, Mooney deixou a banda (diz a lenda que teve um colapso nervoso), sendo substituído pelo músico japonês Kenji Suzuki, mais conhecido como Damo Suzuki. Esta "troca" representou uma grande mudança no estilo do Can, visto que ambos os vocalistas apresentam características bastantes distintas: Mooney é expansivo e atrai bastante a atenção para si, enquanto Suzuki é contido e acaba se mesclando à banda.

O primeiro álbum com o novo vocalista é o pioneiro e único Tago Mago, de 1971, que consta na lista de "mais influentes" de muitas bandas e artistas. A gravação deste disco foi, em alguns momentos, completamente não convencional. Pra começar, foi gravado em um castelo em que a banda morou por um ano (de favor, diga-se de passagem). Quando eles faziam alguma jam para passar o tempo, Holger Czukay os gravava sem que eles soubessem e, posteriormente, editava tudo e transformava fragmentos em uma música estruturada. Czukay também fazia colagens com pedaços de fitas e usava técnicas de estúdio incomuns, muitas vezes testando os limites do ouvinte casual e navegando por águas do avant-garde.

Com o passar dos anos, o som do Can foi se transformando, e a cada lançamento eles incorporaram diferentes influências: ambient, funk, música eletrônica, world music e por aí vai. Em certo ponto, Czukay deixou o baixo de lado e passou a se dedicar exclusivamente às suas experiências com efeitos sonoros. Pouco tempo depois, em 1978, ele deixaria o Can.

Como não fazia mais parte de uma banda, Czukay se viu com total liberdade para criar um álbum exatamente do jeito que gostaria (é a vantagem e desvantagem de ser um artista solo: sem amarras, mas sem a mágica da coletividade). Porém, curiosamente, ele recorreu justamente a seu ex-parceiros de Can para ajudá-lo na parte instrumental, de maneira que todos eles aparecem no álbum em algum momento.

Vamos, finalmente, ao referido álbum, nomeado Movies.

A primeira faixa é, também, uma de minhas favoritas: Cool In The Pool. Eu queria imaginar alguém realmente sisudo e sem senso de humor escutando esta pérola, que começa com uma guitarra limpa tocando um ritmo de funk e logo se transforma em uma música engraçadíssima e bizarra, que causa uma enormidade de sensações no ouvinte. Ao mesmo tempo em que a interpretação vocal é hilária (como no refrão "then let's get cool in the pool" com uma voz afetada e sotaque alemão fortíssimo no último L das duas palavras), as guitarras são muitíssimo bem arranjadas e as inúmeras colagens feitas por Czukay dão uma beleza ímpar à música. É importante frisar o quanto esse processo era diferente e analógico naquela época, e me pergunto como ele fazia para conseguir os samples tão peculiares que conseguia. Tem de tudo: uma mulher cantando ópera, música árabe, solos de trombone e outros instrumentos, efeitos sonoros diversos, colagens de diálogos de filmes etc. Faixa divertidíssima.



Oh Lord Give Us More Money tem um viés mais space rock, com efeitos mais futuristas e som mais esparso. A música de mais de 13 minutos é uma viagem experimental, frequentemente preenchida por guitarras limpas harmonizando, sintetizadores, quase como se fosse um ambient não tão ambient assim. De certa maneira, lembra um Alan Parsons Project um pouco mais extravagante e esquizofrênico.

Persian Love é muito peculiar. Meio reggae, repleta de duetos e solos de guitarra, samples de música árabe e com um clima meio fase-da-água de diversos jogos de videogame dos anos 90, é belíssima e novamente mostra a criatividade de Czukay e seu empenho em surpreender e encantar o ouvinte ao mesmo tempo.

Por fim, a viajadíssima Hollywood Symphony é um épico de mais de 15 minutos que passa por diversos ritmos e intensidades. Podemos até identificar alguns momentos distintos: na primeira metade, ela tem um andamento moderado, com a bateria em looping e os demais instrumentos agindo bem livremente, novamente com samples de filmes e alguns vocais divertidos de Czukay (o inesperado "I feel so beautiful now!" é hilário). Após os 7 minutos, um curto interlúdio sinistro dá lugar a uma pegada bem mais progressiva, com uma bateria frenética mantendo o compasso de 5/4. Eis que, inesperadamente, um acorde belíssimo de teclado anuncia a parte final da música, repleta de acordes longos de teclado e rápidos solos de guitarra. Bastante experimental e ousada.

E assim termina Movies, um álbum repleto de momentos distintos apesar de conter apenas quatro faixas. Não é uma audição fácil (especialmente Oh Lord Give Us More Money e Hollywood Symphony), mas é bastante recompensador se deixar levar pela mente e pelas experimentações de Czukay. É interessante perceber as necessidades dele como compositor: para se expressar, ele precisa recorrer a diversos elementos não-convencionais, muitas vezes alheios à música em si.

É o tipo de álbum que desafia o ouvinte a revisar seus conceitos. Vale a pena escutar.

Tracklist:
1. Cool In The Pool
2. Oh Lord Give Us More Money
3. Persian Love
4. Hollywood Symphony

segunda-feira, 11 de agosto de 2014

Artista: Curtis Harding; Álbum: Soul Power



Artista: Curtis Harding
Álbum: Soul Power
Ano: 2014
Gênero: Soul; R&B; Rock

Há alguns meses, assisti A Um Passo do Estrelato (Twenty Feet From Stardom), vencedor do Oscar na categoria Melhor Documentário em 2014. É um filme interessantíssimo, que mostra o mundo da música visto pelas (e pelos) backing vocals de grandes bandas e artistas. Em certo momento, o documentário aborda um aspecto bastante comum entre esses músicos: a tentativa de sair da penumbra e caminhar diretamente até o foco de luz, seguir uma carreira solo e ser reconhecido por seu talento individual. De certa maneira, a história de Curtis Harding é semelhante.

Harding tem 35 anos e não é exatamente um garoto ou um novato. Já atuou como cantor de apoio e compositor para nomes como OutKast e Cee-Lo Green e, segundo ele mesmo, foi backing vocal a vida toda, pois desde que consegue se lembrar cantou na igreja. Entretanto, só agora, em 2014, ele juntou uma banda e gravou seu próprio material, com seu nome e rosto estampado na capa, e o resultado foi o ótimo Soul Power.

O disco abre com Next Time, uma das favoritas do próprio Harding, com uma leve pegada de folk rock e soul. A bateria reta e o violão são complementados por um suave teclado e pela voz de Curtis. É bacana observar como a música aos poucos vai se preenchendo: a guitarra que entra no refrão, os metais que entram logo depois, o órgão e assim por diante. O solo de teclado no final, logo depois do singelo see you later, bitch, entra com os dois pés no peito e faz o ouvinte pensar em Billy Preston.

Castaway é praticamente oposta à faixa anterior. Bem mais suave e melancólica, bebe direto do R&B, com Harding cantando de maneira quase fantasmagórica acompanhado de seu violão e de um teclado à lá Brian Jackson. No belo refrão, a música se intensifica com a entrada da bateria típica do blues, e a melodia triste ganha corpo de vez. Destaque para o curto, porém belo, solo de guitarra antes do segundo verso.

Parecemos entrar em uma máquina do tempo ao ouvir a terceira faixa, Keep On Shining. A música parece uma mistura de Earth, Wind and Fire com Otis Redding: a introdução na guitarra funkeada com a bateria acompanhando no chimbal e a explosão para o verso, com guitarra e metais dividindo a responsabilidade de criar o palco para a voz de Harding soar inspirada pelos grandes nomes do soul dos anos 60 e 70. O refrão simples ("just keep on shining, keep on shining, keep on shining bright"), com acompanhamento de backing vocals, é insistente em ficar na cabeça. O vídeo retrô também é um show à parte. Ótima faixa.



A deliciosa Freedom é bailante, com sua pitada de salsa e baixo marcante. A performance vocal de Harding é brilhante, alternando momentos graves com falsetes pertinentes. O interessante é que, apesar de todo o swing, é uma música bastante minimalista, com todos os instrumentos tocados suavemente e na medida.

A contenção de Freedom, porém, só dura por seus 2:42. A faixa seguinte, Surf, entra com uma nota distorcida de guitarra e uma bateria alta e pesada. Lembra bastante Lenny Kravitz, com um feeling bem rock and roll e guitarra no talo. A parte em que Harding vai descendo com sua vocalização e culmina em um solo de guitarra é sensacional, e aqui podemos fazer uma reflexão: as cinco faixas abordadas até aqui são completamente distintas entre si. Soul Power é um álbum bastante versátil, e Curtis Harding consegue transitar com tranquilidade e competência entre os gêneros.

I Don't Wanna Go Home é frenética, com a cozinha dominando a música e as guitarras mostrando bastante influência sessentista, principalmente de rock instrumental (Rumble, de Link Wray & His Ray Men, me vem à mente). Novamente Harding acerta no tom e nas referências quando, em um dos poucos momentos mais quietos, nos faz ouvir backing vocals à lá Motown respondendo à sua voz. Mais uma bela faixa.

Beautiful People é puro feeling, com uma bela progressão de acordes e a voz de Harding repleta de chorus e tremolo, como se estivesse nos anos 60 cantando através dos falantes de um Leslie (como a voz de John Lennon em Tomorrow Never Knows, ou do Arnaldo Baptista em Dia 36, ou de Ozzy Osbourne em Planet Caravan, e por aí vai). O arranjo também é belíssimo, com ótimos riffs de guitarra e presença certeira dos metais nas texturas.

The Drive começa com um climão pesado e urbano, com baixo e bateria tocando um riff que poderia, com imaginação, estar até em alguma música do Massive Attack. Porém, a voz e a interpretação de Harding nos lembra que aqui a pegada é outra, e observamos uma interessante mescla entre uma batida moderna e um arranjo delicado, com direito a trompete à lá Cake e uma guitarra espertíssima que eventualmente entra com um lick para deixar o ouvinte com a pulga atrás da orelha. Pra coroar tudo, temos no final um naipe de metais que poderia estar tranquilamente em uma música de Otis Redding.

Heaven's On The Other Side é um flerte válido e sincero com a disco music, claramente influenciado por bandas como Chic e Cameo. Todos os elementos estão aqui: guitarrinha à lá Nile Rodgers, baixo pulsante, bateria tocando o chimbal em semicolcheias e tudo mais. Dançante até a última nota, com um belo refrão e metais muitíssimo bem arranjados. Outro ponto altíssimo.

Drive My Car é um blues rock que me remete aos Rolling Stones, com uma melodia direta e guitarra dominante. Harding canta com uma voz mais grave e entonação mais despojada, como se fosse o resultado de um cruzamento quase inimaginável de Mick Jagger e Jimi Hendrix. Uma ótima faixa para se ouvir dirigindo, como o título sugere.

A penúltima faixa, I Need A Friend, tem um clima totalmente Marvin Gayeano, com o falsete malemolente acompanhando a base tranquila e sexy. A guitarrinha ao fundo com wah wah, os metais e o teclado parecem ter saído diretamente dos anos 70.

A música que encerra o álbum é Cruel World, que, a exemplo de Drive My Car, tem uma atmosfera estradeira. A bateria truncada e o baixo flertando com o jazz dão o suporte para a guitarra distorcida tocar seu riff estranho e Harding destilar seu feeling nos vocais. Um encerramento um tanto destoante das demais, mas é até apropriado se pensarmos no quão heterogêneo é este debut.

Curtis Harding estreou com o pé direito. Ele não se deixou deslumbrar com o debut, e isso significa que sua banda toca junto com ele, não para ele. Há nas músicas uma energia crua que vai na contramão das superproduções que dominam o mainstream, e isso é sempre muito bem-vindo. Ainda é cedo para falarmos de um segundo álbum – Soul Power foi lançado no dia 6 de maio de 2014! –, mas espero sinceramente que Harding consiga manter o nível em eventuais lançamentos vindouros. Certamente não sou o único.

Tracklist:
1. Next Time
2. Castaway
3. Keep On Shining
4. Freedom
5. Surf
6. I Don't Wanna Go Home
7. Beautiful People
8. The Drive
9. Heaven's On The Other Side
10. Drive My Car
11. I Need a Friend
12. Cruel World

segunda-feira, 4 de agosto de 2014

Artista: Benjamin Clementine; EP: Cornerstone



Artista: Benjamin Clementine
EP: Cornerstone
Ano: 2013
Gênero: R&B, Jazz

Em uma estação de metrô de Paris, um rapaz inglês ganhava a vida como busker, que em sua língua natal significa "aqueles músicos de rua que tocam por alguns trocados". Ele não havia exatamente escolhido estar ali; fora o acaso. Londres não guardava nada pra ele, na verdade. Ela não o queria – nem ele nem seus outros quatro irmãos mais velhos, ou seus pais, descendentes de imigrantes ganeses, que tinham "empregos de negros", como ele mesmo define com ironia.

Embora falemos de "irmãos" e "pais", ele não teve uma família, na verdade. Tudo na pequena casa ao norte de Londres era pesado. Regras demais. Quase nada de televisão, quase nada de interação entre os irmãos e, para piorar, as companhias na escola não o agradavam. Só lhe restavam os livros, que devorava com voracidade, e um velho teclado que seu irmão mais velho Joseph havia comprado e nunca havia usado. Mas seu interesse por música aflorou apenas aos 15 ou 16 anos, quando viu uma performance do cantor inglês Antony Hegarty. De repente, o velho teclado de seu irmão ficou atraente, e ele passou a tirar de ouvido composições clássicas que ouvia na estação de música clássica de seu rádio.

Quando tinha 17 anos, não aguentou mais a situação em sua casa e resolveu que era hora de partir. Colocou algumas roupas em uma mochila, entrou em uma lan house, acessou o site de compras de passagens aéreas easyJet e selecionou a primeira opção, ao acaso: Paris. Chegou sem um tostão e sem nenhum vínculo com sua cidade de origem. Jogou o telefone no lixo, pois ninguém iria ligar. Começou a dormir de favor em igrejas e garagens, mesmo sem falar uma palavra de francês, e se sustentava cantando sem acompanhamento pelas estações de metrô da capital da França. Em oito meses, conseguiu comprar um violão, que aprendeu a tocar sozinho.

 E assim Benjamin Clementine chegou à primeira linha deste post.

Eventualmente, ele seria "descoberto" por dois produtores franceses – Lionel Bensemoun e Matthieu Gazier –, que conseguiram marcar algumas apresentações para Benjamin em hotéis e muquifos parisienses. As pessoas se interessaram por aquela figura de quase dois metros, olhar triste e talento fantástico, e logo ele gravaria seu primeiro EP: Cornerstone, aqui resenhado.

É difícil acreditar, mas o talento de Benjamin é ainda mais incrível que sua história. A faixa de abertura, Cornerstone, começa com arpejos ao piano, o único instrumento além da voz do músico de 25 anos. Após uma rápida introdução, a voz grave e profunda anuncia: "I'm alone in a box of stone" (estou sozinho em uma caixa de pedra), reflexo de toda sua vida solitária. Sua performance não deixa nada a desejar para nomes do calibre de Nina Simone, e olhe que isso é uma afirmação muito complicada de se fazer. O refrão emocionante e seus quase suspiros de "home, home, home, home..." têm em si uma carga emocional muito forte.



I Won't Complain traz uma bela melodia, tocada com virtuosismo, e uma letra de certa maneira otimista, que contempla um dia em que os dias bons voltarão. As letras de Clementine, aliás, são absolutamente pessoais, e talvez isso seja parte fundamental de suas performances tão energéticas. Os movimentos da música, os crescendos e as pausas rasgadas por sua voz gritando "but I won't complain" são sensacionais.

O EP encerra com London, que traz uma letra enigmática e um contraste interessantíssimo entre o verso mais ameno e o refrão explosivo, em que Benjamin solta a voz e acelera o ritmo em seu piano. E a música termina com a emblemática frase "when my ways are not happening, I won't underestimate who I am capable of becoming", que quer dizer "quando meus caminhos não estiverem dando certo, não vou subestimar quem sou capaz de me tornar". 

Ainda não há uma previsão exata para o lançamento do primeiro álbum de Benjamin Clementine, mas as músicas e os músicos (sim, terão outros músicos) já existem. E, se o álbum seguir os passos deste EP incrivelmente promissor, teremos um prato cheio.

Tracklist:
1. Cornestone
2. I Won't Complain
3. London

Abaixo, Benjamin toca algumas de suas canções, incluindo as do EP, em um pocket show feito exclusivamente para o Deezer: