sexta-feira, 31 de julho de 2015

Artista: Vasco Rossi; Álbum: Bollicine

Artista: Vasco Rossi
Álbum: Bollicine
Ano: 1983
Gênero: Rock; Pop

Alguns artistas são tão famosos dentro de nosso país que fica difícil imaginar que são anônimos em outros. Chico Buarque certamente poderia caminhar tranquilamente na Noruega, Ivete Sangalo poderia fazer compras sem ser interrompida na Grécia e dificilmente uma das duplas de sertanejo universitário do momento sofreria assédio na Itália. O motivo do alcance restrito do sucesso de músicos brasileiros talvez se dê pela língua, ou talvez pelas características regionais não compreendidas por aqueles que não estejam inseridos no contexto. Mas, independentemente da razão, o alcance é, de fato, curto, raramente ultrapassando nossas fronteiras.

A consequência disso é a seguinte: para os não-brasileiros ou não-lusófonos, um disco de um artista brasileiro tem grande chance de soar estranho e ser considerado exótico. Essa é minha deixa para resenhar um álbum de um dos maiores expoentes da música italiana contemporânea e que, além de tudo, foi eleito o mais bello disco italiano do século XX pela revista Rolling Stone.

Antes de irmos ao álbum, falemos um pouco de seu autor. Vasco Rossi nasceu na cidade de Zocca, norte da Itália, em 1952. Filho de um caminhoneiro, foi nomeado em homenagem a um companheiro de cela que seu pai conheceu na prisão durante a Segunda Guerra Mundial. Sua mãe, apaixonada por música, incentivou-o desde cedo a ouvir e aprender, inscrevendo Vasco em uma escola de canto ainda criança. Foi o suficiente para fazê-lo apaixonar-se também, e aos 13 anos o garoto vencia um concurso de música local com uma canção composta por ele mesmo. Logo estaria formando suas próprias bandas.

Um período determinante para a vida de Vasco foi o ensino médio. Estudando em um colégio salesiano na cidade de Modena, o rapaz não se adaptava à rígida estrutura hierárquica e às rígidas regras impostas pelos padres. A situação resultou em um caráter cada vez mais rebelde e contestador, uma das características pelas quais Vasco é mais conhecido em seu país.

Após muito sacrifício, forma-se do ensino médio e muda-se para a cidade de Bologna. Com uma cena estudantil vibrante nos anos 70, Vasco começa a se envolver com o teatro e as artes, mas é repreendido por seu pai e acaba ingressando na universidade, cursando Economia. Apesar de um bom começo, não demorou para que o já citado envolvimento de Vasco com as artes e os demais estudantes o seduzissem. Largou a Economia e inscreveu-se em Pedagogia, mas também acabou abandonando o curso e, por fim, voltou para Modena. É importante, porém, frisar que os anos de faculdade de Vasco não foram desperdiçados. Foi nesse período que realmente entrou em contato com o rock inglês, que viria a ser muito importante em sua formação como artista.

Em 1975, Vasco funda, junto a seu amigo de infância Marco Gherardi, uma estação de rádio chamada Punto Radio. Além de ser um dos principais DJs e desenvolver sua persona de showman, Vasco entrou em contato com diversos nomes importantes da música local. Eis que, em um dos eventos da Punto Radio, Vasco se apresentou com uma guitarra pela primeira vez em anos, tocando covers e algumas músicas que ele mesmo havia escrito. Era o que faltava para reacender a chama artística dentro do rapaz.

Com a ajuda de alguns amigos do meio artístico, lança seu primeiro compacto em 1977 e, no ano seguinte, seu primeiro álbum (Ma cosa vuoi che sia una canzone - "Mas o que você quer que seja uma canção?"). Nenhum deles foi um grande sucesso, e a fama de Rossi teve de aguardar pacientemente até os anos 80, quando uma polêmica envolvendo uma aparição de alguns segundos em um programa dominical da RAI (canal de TV italiano) o trouxe em evidência.


A breve aparição do rebolante Vasco, que canta que "não importa se a vida será curta, a gente quer gozar", não causou uma boa impressão no jornalista Nantas Salvalaggio, que a execrou em seu artigo na revista semanal Oggi: "(a performance foi) idiota, ruim e drogada". Naturalmente, a juventude da época discordou e o interesse no roqueiro, que apenas viria a confirmar sua fama de bad boy, aumentou consideravelmente. Menos de um ano depois, Vasco já era dono do status de rockstar em seu país.

Em suma: Vasco Rossi é o típico rocker que seguiu a trindade sexo, drogas e rock & roll ao pé da letra durante os anos 80, chegando a ser preso, a sumir e a ter um retorno triunfante nos anos 90. Mas falemos logo de seu álbum mais importante.

Gravado em 1983, Bollicine ("Bolhas", em português) é um álbum que se aventura por diversos meandros do pop rock oitentista. Ao contrário de muitos álbuns resenhados neste blog, é possível datá-lo logo na primeira audição: a produção, o timbre dos instrumentos, os sintetizadores - tudo isso forma uma impressão digital de muito bom gosto, mas irrefutavelmente oitentista.

A primeira faixa carrega o nome do disco e é uma referência explícita à popularidade da Coca-Cola - a empresa, aliás, chegou a ameaçar abrir um processo legal contra Vasco devido às diversas (diversas mesmo) menções ao nome da marca, mas acabou recuando quando percebeu o enorme sucesso da canção e toda a publicidade gratuita que estava recebendo. É um pop rock divertido, com uma letra sarcástica incentivando o consumo da bebida "que te faz bem, que te faz digerir" mas que "me faz morrer com todas aquelas bolhas". Ótima abertura.


Una canzone per te (Uma canção para você) é uma balada quase inteira recitada, com belíssimos interlúdios entre as estrofes e um final belíssimo: quando temos a impressão que estamos diante de um spoken word, entra um coro belíssimo falando sobre como as canções são como flores e sonhos. Interessante o contraste entre a melodia doce e a voz rouca e áspera de Rossi.

Portatemi dio (Traga-me Deus) é puro rock and roll, com um arranjo que poderia estar tranquilamente no clássico Maior Abandonado, do Barão Vermelho. Levada cheia de groove, baixo no talo, licks de guitarra no lugar certo e letra contestadora: "coloquem Deus no banco dos réus e vão defendê-lo, bons cristãos (...) quero contá-lo sobre uma vida que vivi mas não entendi".

Talvez a grande faixa de Bollicine para o público italiano seja Vita Spericolata (Vida Imprudente). Tida como o "hino de uma geração", a bela canção fala do desejo do narrador por uma vida sem grandes expectativas ou planos, com cada pessoa simplesmente "perseguindo seus próprios problemas". Musicalmente, é uma balada belíssima, que começa com um arranjo modesto e aos poucos ganha instrumentos e um refrão marcante, que inclusive cita um lugar chamado Roxy Bar, em homenagem a seu compatriota Fred Buscaglione, falecido em um acidente de carro no auge da carreira, em 1960 (Fred fala do Roxy Bar em sua canção Che Notte!, já citada neste post).


Deviazioni (Desvios) é a mais oitentista de todas as faixas oitentistas de Bollicine. Dominada por sintetizadores, tem uma pegada quase Wanna Be Startin' Somethin', do Michael Jackson. A virada de bateria após cada estrofe chega a ser até engraçada quando escutada nos dias de hoje, mas combina tanto com o conjunto que é difícil imaginar outra coisa no lugar. A letra é um desafio de Rossi a um hipócrita: "Quantos desvios você tem? (...) Você acredita que basta ter um filho para ser um homem e não um coelho?", esbraveja. Canção muito bacana.

A suingadíssima balada Giocala (Jogue-a) é uma das minhas faixas favoritas. O excesso de metais, a levadinha canastra e a letra transgressora ("vai e foda-se o orgulho", literalmente) são uma combinação sensacional. Certamente é um dos melhores arranjos do álbum e transborda feeling.


Ultimo domicilio conosciuto tem um feel quase de jingle, com a frase "this is my radio, my radio star" repetida por um coro feminino durante toda a faixa e uma base instrumental agitada e muito bem elaborada.  Não é o melhor momento de Bollicine, mas é bacana mesmo assim.

Por fim, temos de longe a faixa mais punk e pesada do álbum: Mi piaci perchè (Gosto de você porque). Como o nome sugere, Vasco lista os motivos pelos quais gosta da ouvinte, entre eles "porque você é suja", "porque você usa saia", "porque você é bonita", "porque você é loira" e "porque você é bastarda". Encerra com chave de ouro este belo registro.

Talvez Bollicine não possa ser apreciado integralmente devido à barreira do idioma, mas mesmo assim vale a pena conferir este belíssimo registro da nata do rock italiano oitentista.

Recomendadíssimo.

Tracklist
1. Bollicine
2. Una canzone per te
3. Portatemi Dio
4. Vita spericolata
5. Deviazioni
6. Giocala
7. Ultimo domicilio conosciuto
8. Mi piaci perchè