segunda-feira, 28 de julho de 2014

Banda: Got a Girl; Álbum: I Love You But I Must Drive Off This Cliff Now



Banda: Got a Girl
Álbum: I Love You But I Must Drive Off This Cliff Now
Ano: 2014
Gênero: Pop francês, lounge

É interessante, após mais de 50 postagens e incríveis oito anos, voltar a escrever sobre uma pessoa que ilustrou a primeira, e somente a primeira, resenha publicada neste blog: Dan Nakamura, conhecido como Dan The Automator. O único trabalho dele que eu conhecia era justamente um dos mais marcantes do começo da minha vida adulta: Music to Make Love to Your Old Lady By, de seu projeto Lovage (que conta, também, com o versátil Mike Patton e com a voz de veludo de Jennifer Charles). Entretanto, ao pesquisar os últimos lançamentos, deparei-me com o excêntrico título I Love You But I Must Drive Off This Cliff Now ("eu te amo mas preciso dirigir para fora deste penhasco agora"). Quando vi que se tratava do novo projeto de Dan, não hesitei em sincronizar no Deezer.

O Got a Girl é uma parceria de Dan com a atriz e cantora Mary Elizabeth Winstead, que já participou de filmes como À Prova de Morte, de Quentin Tarantino, e Scott Pilgrim Contra o Mundo. Foi nos bastidores de Scott Pilgrim, aliás, que a dupla se conheceu. Ela foi até Dan para expressar sua admiração pelo Lovage, e Dan, em resposta, perguntou se ela teria interesse em "fazer música". Estava formado o embrião do projeto.

Conforme o diálogo entre os dois foi se desenvolvendo, eles descobriram que tinham em comum o apreço pelo pop francês do fim dos anos 60 e começo dos anos 70, de nomes como Serge Gainsbourg, Jane Birkin, Sylvie Vartan, Françoise Hardy e muitos outros. Aqui vale a pena abrir um parêntese para falar um pouco sobre o pop na França.

Um termo muito recorrente quando se fala de música francesa é chanson (canção). Embora o termo possa ser aplicado a qualquer música cantada em francês, quando se fala em chanson se está pensando num gênero musical que foi popular na França no período entre o final do século XIX até a metade da década de 60 no século XX. Talvez seus representantes mais conhecidos fora dos países francófonos sejam o belga Jacques Brel e Édith Piaf, ambos idolatrados por suas vozes e pela singularidade de suas interpretações. Talvez o equivalente brasileiro do chanson seja o samba-canção: em ambos os estilos, os intérpretes apresentam vozes potentes, que são o principal foco da canção, com o acompanhamento de uma orquestra, piano ou instrumento acústico. Porém, a partir dos anos 60, o estilo, a exemplo do que ocorreria em diversos outros países do mundo ocidental, acabou se misturando a outros de origens distintas (como o rock and roll) e gerando diversos subgêneros, como o yé-yé  e o pop.

O pop francês dessa época apresentava, via de regra, batidas suaves, texturas feitas no sintetizador (ou mesmo orquestra) e era, no geral, muito melódico. A voz, antes potente e protagonista absoluta, agora era muito mais suave e trazia muito mais sex appeal - isso quando o sexo não era praticamente explícito na música, como na famigerada Je t'aime... moi non plus, de Gainsbourg e Birkin. Alguns grupos franceses ainda carregam bastante influência desse estilo, como o Air, por exemplo. Dito isto, voltemos ao Got a Girl. 

O diálogo entre Mary e Dan foi tomando forma até que o single You and Me (Board Mix) foi lançado em maio de 2013. No mesmo mês, eles lançaram I'm Down, que é uma interpretação de uma das canções do "álbum" Song Reader, de Beck (digo "álbum" porque, na verdade, trata-se de uma coleção de partituras). Entretanto, levaria mais de um ano para que o primeiro álbum fosse lançado no dia 22 de julho de 2014.

A faixa de abertura e primeiro single do álbum (que será chamado de I Love You But... no resto deste post) é a viciante Did We Live Too Fast. Tudo parece estar no lugar para os créditos iniciais de um filme de Tarantino: os sinos, as cordas, a batida suave contrastando com os estouros de percussão e, por fim, a voz deliciosa de Winstead cantando suavemente, quase à-lá Jennifer Charles (difícil não fazer a comparação). O refrão chiclete e a parte quase sussurrada dão o já citado tom "français" à ótima faixa de abertura.



A faixa seguinte, I'll Never Hold You Back, bebe bastante do dream pop e do trip hop. Uma batida mais lenta, repleta de sintetizadores, e um suave piano guiam a canção, que em momentos até lembra um pouco The Cramberries. É interessante notar a competência de Winstead tanto nos registros agudos quanto nos mais graves, que são predominantes na maior parte da música.

Close To You é um pop delicioso e direto, com uma batida reta e vocais quase sussurrados. O baixo e os teclados guiam a música até o refrão marcante, rico em sintetizadores. Faixa muito bem construída e equilibrada, com direito a um longo segmento instrumental no final.

O clima leve da canção anterior esvanece logo na introdução de Everywhere I Go, com sua orquestração dramática e levada mais arrastada. A melodia aqui é mais melancólica, quase como uma triste canção de ninar, e no refrão a voz de Winstead entrando junto com o carrilhão (aquele instrumento que emite um som semelhante ao som de "sonhos" ou "estrelas") parece uma onda, oscilando entre os graves e agudos enquanto um cravo dá um tom noir. Ótima faixa.

Last Stop, por sua vez, é bem mais minimalista, com seu pianinho agudo e seu clima quase de jingle. Ao contrário de Everywhere I Go, o clima aqui é leve e quase descompromissado, e dá vontade de estalar os dedos no ritmo da música.

Por isso, é um choque quando a próxima faixa chega com tudo. There's a Revolution bebe da fonte do synthpop e do new wave, fazendo com que o Got a Girl apresente uma pegada indie pela primeira vez em I Love You But.... Com muitos teclados e vocais mais próximos do estilo de Debbie Harry (vocalista do Blondie) do que de Jennifer Charles. Uma ótima surpresa.

Things Will Never Be The Same tem uma sensualidade pesada e atmosférica, com seu riff marcante de baixo e backing vocals. No refrão, os sintetizadores invadem a música de maneira grandiosa, contrastando com a voz suave e contribuindo ainda mais para o clima denso da canção. 

O começo de Put Your Head Down parece ter saído de uma caixinha de música. Entretanto, aos poucos a música vai se construindo diante de nossos ouvidos: primeiro, entra a voz quase fantasmagórica; em seguida, um violão toca alguns acordes e a bateria dá as caras. Quando o ouvinte menos percebe, a música está completa. No refrão, Winstead faz um dueto com ninguém menos que Mike Patton, que tem um interlúdio só pra ele (que, de maneira quase caricata, sugere um sanduíche de fritas com mortadeeeella).

Friday Night tem uma pegada bem lounge, suave e tranquila. Linear, ela mantém o padrão de I Love You But..., com os vocais sussurrados e teclados atmosféricos, mas vejo esta faixa mais como um filler do que como um destaque.

La La La soa um pouco mais contemporânea, guiada mais pela bateria e pelo baixo do que pelo teclado propriamente dito e com uma bateria mais distorcida. Ainda assim, apresenta o clima retrô característico e consegue cativar.

Mas mais interessante que La La La é o divertido filler Da Da Da, com sua batida mais rápida e animada. Ao fundo, Winstead reclama com bom humor de ter de cantar essa "merda de música", mas é uma faixa interessante e contribui para a variedade do álbum.

A saideira é Heavenly. Mais lenta, ela tem um clima mais melancólico e dark, mas culmina em um refrão surpreendentemente delicado e bonito. Talvez lembre até um pouco alguma coisa que o The Cardigans tivesse feito caso quisesse seguir uma carreira no dream pop.

Por fim, o debut do Got a Girl é um lançamento interessantíssimo. Mary Elizabeth Winstead não é uma Amy Winehouse, mas o lance é que não há a menor necessidade que ela seja. Sua voz suave e seu jeito doce de cantar caem como uma luva para o som do Got a Girl. 

Também vale notar como Dan The Automator acertou na mosca na produção, conseguindo apresentar um álbum empolgante e divertido tendo como base um estilo nascido há praticamente meio século.

Mas talvez a grande sacada do Got a Girl tenha sido a leveza. Não me refiro ao som, mas à visão deles em relação a eles mesmos. Não é um projeto pretensioso, com grandes objetivos e ambições. Trata-se apenas de uma dupla fazendo um som que eles curtem, e nada mais. Os teasers do álbum, divulgados no canal Maker Music, são ótimos. Confira o exemplo abaixo e entre no canal para ver os outros!




Embora I Love You But I Must Drive Off This Cliff Now talvez seja um pouco longo demais (poderia tranquilamente ter duas ou três faixas a menos), algumas das músicas são verdadeiramente memoráveis – temos aí Did We Live Too Fast, Close To You, Everywhere I go e There's a Revolution, que não me deixam mentir.

Um dos lançamentos mais empolgantes do ano até agora.

Tracklist:
1. Did We Live Too Fast
2. I'll Never Hold You Back
3. Close To You
4. Everywhere I Go
5. Last Stop
6. There's a Revolution
7. Things Will Never Be The Same
8. Put Your Head Down
9. Friday Night
10. La La La
11. Da Da Da
12. Heavenly