quarta-feira, 25 de julho de 2012

Banda: Phish; Álbum: A Picture Of Nectar


Banda: Phish
Álbum: A Picture of Nectar
Ano: 1992
Gênero: Jazz-fusion, rock, funk, afro-jazz, bluegrass



Existem muitas bandas das quais a gente já ouviu falar, mas nunca foi atrás. O Phish era uma dessas bandas pra mim; eu conhecia o nome, sabia que era “fish com ph”, mas nunca havia ouvido uma música sequer.

Fui escutar a primeira música quase que por acidente, e só aconteceu porque sou um gamer. Ao jogar Rock Band 3 (pra quem não conhece, um simulador de banda divertidíssimo), fui atrás da música mais difícil de todas e me deparei com Llama, justamente do Phish. E não era à toa que o jogo classificou a canção como complexa: absolutamente todos os instrumentos apresentam partes complicadíssimas em ritmo frenético. Foi o suficiente para abrir meu apetite e ir atrás da banda.

Formada em 1983 nos EUA, a banda mantém a mesma formação desde 1986, quando o guitarrista Jeff Holdsworth saiu da banda para seguir a carreira de engenheiro eletrônico. Anteriormente, o percussionista Marc Daubert também havia feito parte da banda por aproximadamente cinco meses em 1984. Mas o Phish como conhecemos é composto por Trey Anastasio (guitarra/vocal principal), Jon Fishman (bateria/vocal), Mike Gordon (baixo/vocal) e Page McConnell (teclado/vocal). Vale notar que o membro mais recente da banda é o tecladista, que se juntou ao Phish em 1985.

Boa parte da fama do Phish vem da qualidade técnica dos músicos e das longas jams que eles fazem ao vivo. Creio que fãs mais xiitas iriam repreender o fato de eu estar resenhando logo um álbum de estúdio, porque boa parte do que a banda representa só pode ser sentido quando eles estão sobre o palco.

Mas acontece que eu me apaixonei por A Picture Of Nectar. Lançado em 1992, é o terceiro álbum de estúdio do Phish, mas o primeiro a ser lançado por uma gravadora de grande porte (Elektra Records). Tentar definir o gênero musical desta pérola é um desafio, visto que a banda transita com naturalidade entre tantos gêneros que, num descuido, pode parecer que estamos ouvindo uma coletânea de world music.

Antes de detalhar as músicas, entretanto, vale a pena falar da capa. Já ouvi falar que o rosto não-muito-subliminar na laranja é de Salvador Dali ou mesmo de Albert Einstein, mas ambas as informações estão erradas. Trata-se de Nectar Norris, o proprietário de um bar na cidade de Burlington – daí o nome do disco.

A faixa de abertura é justamente a já citada Llama. Uma pedrada influenciada por jazz, funk, rock e deus sabe o quê, abre o disco com estilo, já deixando evidente a qualidade técnica da banda. Fishman é um monstro na bateria, o baixo de Gordon é destruidor, os teclados de McConnell são hipnotizantes e Anastasio é técnico e criativo – qualidades que raramente aparecem juntas em grau satisfatório em um guitarrista.

O contraste de Llama com Eliza, a faixa subsequente, não poderia ser maior. Um jazz instrumental belíssimo, apesar dos acordes dissonantes e melodia incomum. Tem pouco mais de um minuto e meio, mas chama-la de filler daria a falsa impressão de dispensabilidade.

Cavern é swingada, bem marcada pelo baixo e pela bateria, com uma pegada urbana noventista. Nesta música fica evidente a influência de Frank Zappa nos vocais de Anastasio, com sua voz grave e tom debochado. Os backing vocals, perfeitamente executados ao longo do álbum, já dão o ar da graça aqui.

A quarta faixa é Poor Heart, composta e cantada por Gordon. Completamente diferente das faixas anteriores, é um bluegrass empolgado e divertido, com direito a banjo e diversos solos, sempre contextualizados dentro da canção. Ótima faixa.

Stash é o ponto mais alto do disco, na minha opinião. Um tema sensacional de guitarra que vai se transformando e, inesperadamente, molda-se em uma salsa que fica na cabeça para sempre. A vocalização do meio da música e o “maybe so and maybe not” acompanham o ouvinte por muito tempo após o fim da música. O instrumental é um show à parte, mas essa é uma observação que acaba se tornando redundante dentro deste álbum.

Manteca tem menos de 30 segundos, e é um cover engraçadinho de um afro-jazz gravado pelo trompetista Dizzy Gillespie em 1947, com a frase “crab in my shoemouth” cantada na melodia da original. Vejo ela como uma pequena introdução a Guleah Papyrus, um jazz-reggae (ou reggae-jazz?) avant-garde que se desdobra em uma viagem instrumental ao melhor estilo “Phish ao vivo”.

Magilla é um jazz instrumental escrito por McConnell. Uma canção deliciosa, que quase pede um pub, um charuto e um copo de uísque. The Landlady, que dá sequência, também é instrumental, mas bebe da fonte do calypso e da salsa e traz uma deliciosa linha de guitarra.

Glide parece um interlúdio de programa da TV Cultura. Uma melodia contry-folk tocada no violão e, de repente, as vozes entram em harmonia, cantando “we’re glad that you’re alive/a glide” (estamos felizes que você esteja vivo / seja um planador). Surreal, mas nem por isso menos bela. A maneira como a música se arrasta graças à bateria, baixo e piano é incrível, e o final acapella é a cereja no topo do bolo. Bela faixa.

E então vem a zappianíssima Tweezer, com sua linha de baixo funkeada – o grande destaque da música -, vocal sempre em harmonia e muitos solos. É muito legal a maneira como a música vai se desconstruindo a partir da metade, ganhando em intensidade até ir desmoronando aos poucos, perdendo velocidade até o colapso completo.

The Mango Song traz novamente um feel latino, com uma melodia tristonha que vai se alegrando do meio da música em diante. É uma ótima música, mas não me cativou tanto quanto outras do álbum.

Chalk Dust Torture é a mais próxima de um rock and roll puro do álbum. Com a voz bem mais grave (provavelmente alterada em estúdio), o timbre de Anastasio lembra Hendrix ou algum outro cantor negro de rock and roll. É uma ótima faixa, animadíssima e muito bem executada.

As duas músicas seguintes são fillers. Faht é uma faixa acústica escrita pelo baterista Fishman. Trata-se de um violão repetindo uma melodia e barulhos de animais ao fundo, com uma súbita invasão de carros e buzinas. Catapult, por sua vez, é apenas uma voz cantando/recitando um poema surreal.

O álbum termina com Tweezer (Reprise), um trecho de Tweezer com um arranjo diferente e grandioso.

A Picture of Nectar é um ótimo álbum para quem quer conhecer o trabalho do Phish e, principalmente, para quem gosta mesmo de música. Qualidade inquestionável, recomendadíssimo.

Tracklist:
  1. "Llama" (Anastasio) – 3:32
  2. "Eliza" (Anastasio) – 1:32
  3. "Cavern" (Anastasio, HermanMarshall) – 4:24
  4. "Poor Heart" (Gordon) – 2:44
  5. "Stash" (Anastasio, Marshall) – 7:11
  6. "Manteca" (FullerGillespiePozo) – 0:29
  7. "Guelah Papyrus" (Anastasio, Marshall) – 5:22
  8. "Magilla" (McConnell) – 2:46
  9. "The Landlady" (Anastasio) – 2:56
  10. "Glide" (Anastasio, Fishman, Gordon, Marshall, McConnell) – 4:13
  11. "Tweezer" (Anastasio, Fishman, Gordon, McConnell) – 8:42
  12. "The Mango Song" (Anastasio) – 6:23
  13. "Chalk Dust Torture" (Anastasio, Marshall) – 4:36
  14. "Faht" (Fishman) – 2:21
  15. "Catapult" (Gordon) – 0:32
  16. "Tweezer Reprise" (Anastasio, Fishman, Gordon, McConnell) – 2:39

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

Banda: Sparks; Álbum: Kimono My House


Banda: Sparks
Álbum: Kimono My House
Ano: 1974
Gênero: Glam rock; pop

Finalmente uma resenha de um álbum que pode ser classificado, de certa forma, como glam rock, um gênero que é impiedosamente massacrado e confundido. Não tem como eu falar de Sparks e da história do rock and roll nos anos 70 sem explicar o que é esse estilo e quem são seus herois.

O glam rock é um estilo nascido na Inglaterra no comecinho dos anos 70. Musicalmente falando, é um rock and roll carregado de sensualidade e irreverência, e isso se reflete muito (e não há como frisar esse muito suficientemente) no visual das bandas. O visual, aliás, é uma das peças-chave do glam – termo que remete a glamour. Valia tudo: botas-plataforma, maquiagem, roupas brilhantes, cachecóis, permanentes, glitter e por aí vai.

É geralmente aceito que o glam rock nasceu quando uma banda chamada Tyranossaurus Rex, liderada pelo eterno Marc Bolan, mudou de nome para T. Rex, trocou os violões pelas guitarras elétricas e lançou o single Ride A White Swan em outubro de 1970. A música aos poucos ganhou as rádios britânicas e conquistou o público com sua batida simples, guitarra-chiclete e a voz peculiar de Bolan. Mas não há glam rock sem imagem, e o T. Rex realmente começou a fazer história a partir desta apresentação, na qual Bolan e a banda aparecem usando roupas brilhantes e glitter:





Em 1971 o T. Rex lançou o essencial Electric Warrior (praticamente a enciclopédia do glam rock), mas o auge do estilo foi, sem dúvidas, 1972, quando a banda de Bolan se consolidou com The Slider, o Roxy Music lançou seu debut auto-intitulado e principalmente quando David Bowie lançou seu inacreditável The Rise And Fall Of Ziggy Stardust And The Spiders From Mars.

Esse álbum foi essencial para a difusão do estilo além-Reino Unido. Bowie conquistou fama internacional e levou a febre do glam rock para os EUA, influenciando nomes como LouReed e Iggy Pop (basta ver as capas de Transformer e Raw Power para entender o que eu estou falando). Além disso, a abordagem de Bowie era mais criativa que a de seu amigo Bolan, levando o estilo a um patamar mais elevado - fãs de T. Rex, não me crucifiquem! Eu adoro a banda, mas se compararmos Bowie e Bolan de 1970 até 1977 esse ponto de vista se sustenta quase sem argumentação.

De qualquer maneira, tudo isso para chegar até o Sparks. A banda, liderada pelos irmãos Ron e Russell Mael, nasceu nos EUA em 1968 com o nome de Halfnelson. O estilo deles nessa época era próximo ao pop/rock psicodélico, e não demorou para que o produtor e músico Todd Rundgren (que também é deveras talentoso, tendo lançado álbuns ótimos como Something/Anything e A Wizard, A True Star) os descobrisse. Lançaram um álbum auto-intitulado que vendeu muito mal, mudaram o nome da banda para Sparks e lançaram o álbum A Woofer In Tweeter’s Clothing. Esse álbum rendeu a eles uma turnê pela Inglaterra e uma apresentação na BBC na qual o apresentador Bob Harris os classificou como “uma mistura entre os Mothers Of Invention (banda de Frank Zappa) e The Monkees.

Em 1973, o Sparks se mudou de vez para a Inglaterra a convite da gravadora Island Records. Os irmãos aceitaram e mudaram-se para Londres, mesmo sem ter nenhuma música nova.

Esse problema seria resolvido durante o verão por Ron. Com um piano e um violão, ele compôs um conjunto de músicas com um padrão de qualidade nunca antes atingido pela banda – as músicas que estariam em Kimono My House.  As músicas incorporavam elementos interessantíssimos, como música clássica e rock – algo que não era tão apreciado nos EUA, mas que fazia um sucesso enorme no Reino Unido; eles chegaram a se apresentar para uma plateia de seis pessoas nos EUA, mas lotavam as casas de shows em Londres.

Além das composições únicas, a banda se destacava pela presença de palco interessantíssima: enquanto o vocalista Russell Mael era extravagante e hiperativo, dando pulinhos e fazendo caras e bocas, seu irmão Ron era o oposto, com uma expressão fixa, vestido com roupas sociais e seu bigodinho à-lá Hitler. Falemos, enfim, de Kimono My House.

Lançado em 1974, trata-se do primeiro álbum da banda na Inglaterra. Foi muitíssimo bem sucedido em muitos sentidos, e é certamente o álbum mais importante do SparksKurt Cobain, o falecido frontman do Nirvana, e Morrissey, ex-frontman dos Smiths, citam este álbum em sua lista de favoritos – o último chegou a escrever uma carta para os irmãos Mael para agradecê-los por terem despertado seu interesse por música com Kimono My House. O que é sensacional sobre este álbum é que as músicas são incrivelmente extravagantes e urgentes ao mesmo tempo. Os ritmos e melodias são muito, mas muito inquietantes – no bom sentido. Algumas pessoas chegam a definir o estilo deles como um derivado do camp humour – um tipo de humor que é engraçado justamente porque é deliberadamente extravagante e ridículo.

Antes de falar das músicas, vou falar de outra parte do álbum que merece destaque: a capa. Sem nenhuma indicação na frente do nome da banda ou do álbum, traz apenas a foto de duas mulheres japonesas vestidas em trajes tradicionais (kimono) na frente de uma parede verde. Desafiador e muito incomum, até para os dias de hoje.

A faixa de abertura é talvez a música mais conhecida da banda: This Town Ain’t Big Enough For Both Of Us. Peculiaríssima, a música mostra bem o estilo do Sparks nesse álbum: dominado pelos teclados de Ron, com os únicos e agudos vocais de Russell em seu estilo operático cantando letras surreais e engraçadas. Começa com um teclado quieto, mas logo a voz e os riffs geniais da guitarra de Adrian Fisher, a bateria furiosa de Dinky Diamond e o baixo sólido de Martin Gordon dão um peso incrível a essa faixa memorável, que chegou a ocupar o segundo lugar nas paradas britânicas. Perfeita abertura para o álbum.



Amateur Hour começa com um riff frenético que tem a cara do Sparks. Frenética, foi o segundo single do álbum e alcançou o sétimo lugar nas paradas. A letra é um sarro e fala sobre como se deve treinar na prática sexual para se tornar um “profissional” – e que “ela vai fazer você perceber” quando você chegar lá. Os teclados de Ron e a bateria de Diamond são o grande destaque dessa faixa para mim.

Falling In Love With Myself Again é uma faixa esquisitíssima. É uma valsa meio dark, pesada, e com um toque daquelas canções tradicionais alemãs. Algumas passagens instrumentais são muito bem executadas e originais, com apenas o teclado, baixo e bateria levando a música. A parte em que a guitarra “pergunta” e o baixo “responde” é um show à parte.

Here In Heaven é espetacular. A melodia é belíssima e pesada ao mesmo tempo. A letra é um show à parte: fala de um garoto apaixonado que havia combinado de se suicidar junto com a namorada, mas na hora H apenas ele se matou. No fim, ele se encontra sozinho no paraíso sem ela. Tragicômica ao extremo, criativa e bonita.

Thank God It’s Not Christmas pode ser resumida em seu refrão: “Thank God it’s not Christmas, when there is only you and nothing else to do” – ou “Graças a Deus não é Natal, quando só tem você e nada mais para fazer”. Sensacional, novamente com uma melodia sombria e engraçada ao mesmo tempo, do jeito que só o Sparks consegue fazer. Os teclados dão um tom muito grandioso à música, principalmenten o refrão. Bela faixa.

Apesar da guitarra ser um instrumento “secundário” no Sparks, o talento do guitarrista consegue fazê-la sobressair em diversos pontos do álbum. Hasta Mañana, Monsieur começa com um teclado calmo, mas logo a música acelera e a guitarra de Fisher rouba a cena com riffs interessantíssimos. A letra fala sobre um rapaz tentando impressionar uma garota alemã falando uma mistura de inglês, francês e espanhol – como se fosse uma Michelle, dos Beatles, levada ao extremo do divertido.

Talent Is An Asset é uma das minhas preferidas do álbum. Abre com a batida direta e seca de Diamond e é uma pedrada do início ao fim, com algumas quebras rítmicas e melodias típicas do Sparks. Uma das faixas mais claramente influenciadas pelo glam rock, traz uma letra que fala de Albert Einstein. Foi lançada como single nos EUA, mas fracassou – lembre-se que o Sparks, apesar de estadunidense, estourou primeiro no Reino Unido. O refrão “Talent is an asset, you’ve got to understand that” (Talento é uma qualidade, você precisa entender isso), cantado em falsete por Russell, fica na cabeça.

Complaints foi descrita por Ron como “três minutos de reclamações”. Mas a música é muito mais que isso; um glam pop grudento, com uma melodia criativa e um quê de punk rock, mostrando como o Sparks é bem sucedido em misturar estilos.

In My Family é uma das faixas que menos me chamou a atenção até eu reparar na letra sensacional, que fala sobre empresas e negócios familiares. Em certo momento, o narrador afirma que vai se enforcar na árvore genealógica. Sensacional, apesar de não se destacar tanto assim das outras.

O álbum fecha com Equator, um quase-blues cantado em um falsete extremamente agudo. A palavra equator vai ficar na sua cabeça por horas após ouvir essa música, que termina com uma longa improvisação vocal de Russell. Brilhante, triste e engraçada ao mesmo tempo.

Kimono My House é um álbum muito peculiar. Tem um estilo muito bem definido e único, muitíssimo criativo e é praticamente uma aberração até hoje. Vale muito a pena escutar.

Recomendadíssimo.

Tracklist:
  1. This Town Ain't Big Enough for Both of Us
  2. Amateur Hour
  3. Falling In Love With Myself Again
  4. Here In Heaven
  5. Thank God It's Not Christmas
  6. Hasta Mañana, Monsieur
  7. Talent Is An Asset
  8. Complaints
  9. In My Family
  10. Equator

quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

Artista: Gil Scott-Heron/Brian Jackson; Álbum: Winter In America


Artista: Gil Scott-Heron/Brian Jackson
Álbum: Winter In America
Ano: 1974
Gênero: Soul; Jazz-Fusion; Spoken Word

Bem-vindos ao primeiro post de 2012 aqui no Música Estranha e Boa!

O álbum que irei resenhar é um álbum colaborativo feito por dois músicos muitíssimo competentes, então nada mais justo do que eu explicar um pouco quem são eles, como acabaram se juntando e, então, falar deste disco maravilhoso chamado Winter In America.

Gil Scott-Heron nasceu em 1949 em Chicago e faleceu em 2011, com apenas 62 anos de idade. Filho de uma cantora de ópera e de um jogador de futebol, Scott-Heron teve uma infância complicada, mudando constantemente de casa devido ao divórcio dos pais e à morte da avó. Sempre foi muito talentoso, e um de seus textos impressionou o diretor de uma escola majoritariamente branca dos EUA, e graças a isso ele ganhou uma bolsa integral para estudar lá – detalhe que ele tinha apenas 12 anos na época e era um dos 5 alunos negros em toda a escola. Durante sua entrevista de admissão, o seguinte diálogo teria ocorrido:

-Como você se sentiria se, ao subir o morro a pé depois de sair do metrô para vir para a escola, visse um de seus colegas chegando de limusine?
-Da mesma maneira que você. Você não tem dinheiro para comprar uma limusine. Como você se sente?

O tempo passou e o promissor aluno entrou na Lincoln University, concluindo inclusive um mestrado em Creative Writing (escrita criativa) em 1972. Durante a faculdade ele conheceu seu parceiro em diversos álbuns, inclusive o aqui resenhado. Seu parceiro se chama Brian Jackson.

Jackson nasceu em 1952 no Brooklyn, EUA. Seu estilo único ao piano é inconfundível, e ele já foi muito sampleado por diversos rappers de diversas gerações. Seu nome passou a ser muito vinculado ao de Gil Scott-Heron durante os anos 70, o período mais produtivo e significante da carreira de ambos os músicos.

O primeiro álbum que os dois lançaram juntos, apesar de ser creditado na capa apenas à Scott-Heron, foi o aclamadíssimo Pieces Of A Man, de 1971. Este álbum trazia um dos trabalhos mais reconhecidos e importantes de Scott-Heron, a canção The Revolution Will Not Be Televised – um trabalho que ele estimava tanto que também havia estado também em seu álbum anterior, Small Talk At 125th and Lenox. Esta canção é a marca registrada do artista porque traz seu tema preferido – política, mais especificamente a situação do negro estadunidense – sendo executado em seu estilo mais característico – o spoken word soul, um tipo de “avô” do rap que traz poesias, geralmente de cunho social, recitadas ritmicamente sobre um pano de fundo musical, geralmente  calcado no soul e no funk.

Mas Winter In America não é um disco de spoken word. Ele é muito mais que isso. Trata-se de uma viagem minimalista incrivelmente tocante, executada por músicos gabaritadíssimos.

Eu me lembro exatamente minha reação ao ouvir a voz de Gil Scott-Heron pela primeira vez. Eu falei exatamente isso:

-Puta que pariu, que voz é essa?

Ah, a voz de Gil Scott-Heron. Limpa, cristalina, grave na intensidade certa, com feeling. É realmente impressionante, ainda mais quando nos é apresentada em uma música tão bonita e tocante quanto Peace Go With You, Brother (As-Salaam-Alaikum). Trata-se de um desabafo sobre alguns representantes negros que estavam perdendo o foco e agindo de maneira hipócrita ou inadequada aos olhos de Scott-Heron. A melodia tocada por Jackson no piano elétrico somada à interpretação e aos versos nos entregam uma das melhores faixas do álbum logo de cara. Apenas para ilustrar, eis alguns versos:

Peace to you, brother – don’t seem to matter so much now just what I say
Peace go with you, brother – you’re the kind of man who think he’s got to have his own way
You’re my father, you’re my uncle and my cousin and my son
But sometimes, sometimes, I wish you were not”

Ou seja:

Paz para você, irmão – não parece que o que eu falo importa tanto agora
Que a paz vá com você, irmão – você é o tipo de homem que acha que deve seguir seu próprio caminho
Você é meu pai, você é meu tio e meu primo e meu filho
Mas às vezes, às vezes, eu queria que você não fosse”

Outra coisa que chama muito a atenção na música é como ela é guiada principalmente pelo piano e pelo baixo, com a bateria dando apenas alguns leves toques no prato de condução.

A segunda faixa é a longa Rivers Of My Fathers, uma música sobre a procura do homem negro moderno por suas origens, sobre seus questionamentos e preocupações. A levada da música é bem suave, com a bateria levando calmamente a música no aro da caixa e o piano de Jackson sempre bebendo da fonte do jazz. Na letra, o narrador sempre fala de “casa”, e apenas no final Scott-Heron deixa claro, em um sussurro, o que quer dizer: Africa. Tocante e bela.

A Very Precious Time é uma triste e bela canção de amor com uma letra nostálgica sobre inocência perdida. Após uma introdução com piano elétrico e flauta, Gil Scott-Heron canta melancolicamente:

Was there a touch of spring?
Did she have a pink dress on?
And when she smiled her shyest smile, could you almost touch the warmth?
And was it your first love a very precious time?”

Em português:

“Havia um toque de primavera?
Ela estava com um vestido rosa?
E quando ela sorriu seu sorriso mais tímido, você quase pôde tocar o calor?
E o seu primeiro amor foi um momento muito precioso?”

A música não tem nenhuma percussão, e isso dá um tom ainda mais triste e belo para esta belíssima canção.

Back Home, por sua vez, é bem mais animada, falando sobre a importância de nunca se esquecer das origens e da família. “Eu tenho que voltar e ver a minha gente”. Simples e genial, realmente revigorante e animadora. Destaque para o dueto de flautas no meio da canção.

The Bottle foi o único single do álbum e traz um swing de primeira junto com a letra sobre alcoolismo. O ritmo quase latino fez grande sucesso, e ao ser questionado sobre isso Scott-Heron foi categórico: “Música popular não precisa ser uma merda”. De fato é uma ótima música, com uma letra sensacional sobre pessoas que se deixam seduzir demais pelo álcool e acabam “na garrafa”.



Terminada a paulada anterior, o álbum volta a ter um momento introspectivo com a bela Song For Bobby Smith, uma música sobre um garoto de 4 anos que, segundo a apresentação do próprio Gil no começo da música, estava com Brian Jackson no dia em que eles estavam compondo a música. O garoto gostou tanto da música que se apropriou dela, dizendo que “era dele”. Os músicos gostaram da ideia e a concederam ao moleque – um belíssimo presente.

Um dos momentos que eu particularmente mais gosto em todo o álbum é a lindíssima Your Daddy Loves You. A música, endereçada obviamente à filha de Scott-Heron, Gia Louise, é uma linda declaração de amor com uma melodia alegre (apesar da execução minimalista). Your daddy loves you – your daddy loves his girl” – é impossível não sorrir. Ótima faixa.

Passado o momento “bonitinho”, Scott-Heron volta com tudo com a ácida H20 Gate Blues, uma paulada no puro estilo spoken word sobre, obviamente, o escândalo de Watergate. A letra é fenomenal, mas longa demais para eu colocar na íntegra aqui – por isso, faça um favor para você mesmo e clique aqui para lê-la. Isso sem contar os comentários muitíssimo bem humorados sobre o blues no começo da música (que, aliás, é um blues).

O álbum termina, finalmente, com uma versão bem mais curta de Peace Go With You, Brother.

Winter In America foge do convencional e nos mostra um som coeso e muito bem executado, com toda a banda no seu auge e composições originais e únicas. Música estadunidense negra setentista na sua forma mais sincera e seminal.

Recomendadíssimo.

Tracklist:
  1. Peace Go with You, Brother (As-Salaam-Alaikum)
  2. Rivers of My Fathers
  3. A Very Precious Time
  4. Back Home
  5. The Bottle
  6. Song for Bobby Smith
  7. Your Daddy Loves You
  8. H²Ogate Blues
  9. Peace Go with You Brother (Wa-Alaikum-Salaam)