sexta-feira, 1 de outubro de 2010

Artista: Laura Nyro; Álbum: Eli and the Thirteenth Confession



Artista: Laura Nyro
Álbum: Eli And The Thirteenth Confession
Ano: 1968
Gênero: R&B; Pop; Gospel; Soul

Acho que poucas pessoas discordam que os anos 60 representaram um salto cultural inacreditável no mundo ocidental. Muita coisa mudou em vários aspectos, e na música não poderia ser diferente.

Eu sei que o parágrafo acima é um clichê deveras desgastado, mas foi a melhor maneira que encontrei para começar a escrever sobre este álbum da cantora americana Laura Nyro lançado em 1968.

Pra começar, eu nunca tinha ouvido falar dessa cantora até poucos dias atrás, quando estava pesquisando por material "novo" dos anos 60. E quando vi a capa do álbum Eli and the Thirteenth Confession, achei que tinha trombado sem querer em um álbum do Nightwish ou de alguma banda parecida.

Laura Nyro nasceu no Bronx, em Nova Iorque, em 1947, filha de um afinador de piano e de uma bibliotecária. Aprendeu a tocar piano e a cantar sozinha quando criança e sempre se interessou por literatura e poesia e começou a compor aos oito anos de idade. O curso natural das coisas a levou a seguir a carreira musical, e ela cita a grande Nina Simone como uma de suas principais influências (um dia faço uma resenha de um disco da Nina aqui).

Por sempre ter tido contato com a cultura negra da época (que, vale lembrar, era de muita segregação nos EUA) Laura Nyro desenvolveu um estilo muito peculiar de compor, agregando elementos musicais do jazz, gospel e R&B ao rock e ao doo wop, resultando em uma combinação muito interessante. É tão forte essa influência que, sem ver a capa do disco, é muito fácil deduzir equivocadamente que Laura era negra pelo estilo da música que cantava em sua época.

O debut de Laura Nyro foi o bem recebido More Than a New Discovery, de 1967, mas o álbum aqui resenhado é o segundo, Eli and the Thirteenth Confession, lançado no começo de 1968 quando a cantora tinha 20 (!) anos. Todas as músicas foram compostas por ela, assim como em seu debut - a moça era muito talentosa.

No meu caso, bastou escutar a primeira faixa do disco - Luckie - para ser conquistado. A introdução grandiosa, cheia de metais com a voz potente da moça e a súbita pausa para a volta em clima de jazz, que depois vira rock e até funk. As mudanças constantes de andamento são encantadoras, e é uma das marcas mais fortes da compositora.

Lu é uma das minhas favoritas. A melodia deliciosa cantada por Laura, que logo é acompanhada por backing vocals assaz competentes, fica na cabeça. É gritante a influência da música negra americana nessa música. Sensacional!

Sweet Blindness começa com um quê de Beach Boys para, novamente, nos surpreender com as mudanças abruptas de andamento. Aproveito para fazer um adendo: quando falo nas mudanças de andamento nas músicas de Laura Nyro estou me referindo a algo muito mais suave e acessível que as mudanças de andamento em uma música do Fantômas, por exemplo. As músicas desse disco, apesar das melodias elaboradas e tempos complexos, são extremamente calcadas no pop, e isso o torna muito especial.

Poverty Train, por exemplo, tem uma levada totalmente blues logo de cara, mas é um belíssimo soul em sua maioria. A voz de Laura está muito mais para o grave nessa música, e a interpretação é impecável. "I just saw the devil and he's smiling at me".

Lonely Women poderia facilmente ter saído de um disco da Nina Simone. Começa totalmente intimista, freeform, e do nada fica com uma cara meio Clube da Esquina. É estranha assim e bela assim. Nem preciso dizer que a interpretação de Nyro é um show à parte.

Eli's Comin' é o que mais se aproxima de uma faixa título. Gosto muito da descrição que o reviewer da Allmusic.com fez: "essa música dá mais guinadas e voltas que uma cobra no chão quente do deserto". E é exatamente isso. Ela passa de um começo profundo e lento a um ritmo frenético, com muita influência de gospel, para depois voltar ao clima sombrio, muito bem texturizado pelos instrumentos e vozes. Uma belíssima composição.

Timer começa operesca, com Laura demonstrado uma versatilidade vocal impressionante, mas tirando isso é uma das menos interessantes do álbum. O mesmo não podemos dizer de Stoned Soul Picnic, com seu clima totalmente sessentista. Poderia facilmente ser regravada por alguma banda vocal como The Mamas and The Papas ou 5th Dimension - os últimos, inclusive, a regravaram. Lisérgica e onírica.

Emmie é uma balada fluida e belíssima, deliciosa de se escutar e com um final emocionante. As orquestrações, a voz... tudo, mais uma vez, está no lugar.

Woman's Blues é uma das mais ambiciosas do álbum. Começa com uma pegada erudita mas evolui para um soul extremamente swingado, com direito até a clavinete no final. A letra é incrivelmente pessoal e dramática. "Go live as long as an elephant, but there won't be more lovin' woman than me".

Once It Was Alright (Farmer Joe) é animada, dançante, bebendo da fonte do gospel e do soul mais uma vez, com transições menos suaves que das músicas anteriores. Talvez por isso seja um pouco menos acessível, mas novamente é um prazer escutar Laura cantando.

December's Boudoir é lentíssima, totalmente livre, guiada totalmente por piano e voz com texturas de harpa e orquestra. É a música mais lenta do álbum, e certamente a mais intimista.

A 13ª e última música do álbum, como o nome sugere, é The Confession. De todas as músicas talvez seja a que mais bebe da fonte do rock, mas não qualquer rock e sim da nata do rock sessentista - aquele rock orquestrado e elaborado que começou a aparecer na metade da década. E o final é realmente um gran finale, intenso como a abertura de Luckie, a primeira faixa.

Uma curiosidade interessantíssima: a versão em vinil do álbum trazia o encarte interno com letras - o que já era raro - e, como se não bastasse, ele era perfumado. Quem tem a versão original diz que o perfume dura até hoje, mais de 42 anos depois do lançamento e 13 da morte de Laura Nyro de câncer de ovário, aos 49 anos de idade.

Recomendadíssimo.

Tracklist:
  1. "Luckie" – 3:00
  2. "Lu" – 2:44
  3. "Sweet Blindness" – 2:37
  4. "Poverty Train" – 4:16
  5. "Lonely Women" – 3:32
  6. "Eli's Comin'" – 3:58
  1. "Timer" – 3:22
  2. "Stoned Soul Picnic" – 3:47
  3. "Emmie" – 4:20
  4. "Woman's Blues" – 3:46
  5. "Once It Was Alright Now (Farmer Joe)" – 2:58
  6. "December's Boudoir" – 5:05
  7. "The Confession" – 2:50

quarta-feira, 15 de setembro de 2010

Banda: Penguin Cafe Orchestra; Álbum: Music From The Penguin Cafe



Banda: Penguin Cafe Orchestra
Álbum: Music From The Penguin Café
Ano: 1976
Gênero: Neoclássico; Folk Instrumental

Esbarrar em um álbum muito bom e praticamente desconhecido, lançado há décadas e esquecido por muitos artistas e músicos, é uma sorte tremenda. Principalmente quando este álbum é muito diferente de tudo o que você escutou. É essa a minha relação com o álbum que irei resenhar.

Em uma madrugada fria e difícil, conversando com uma amiga, ela me mostrou uma música incrivelmente bonita, com um toque cinematográfico irresistível. A guitarra com um leve flanger, levemente dedilhada, junto com um piano elétrico calmíssimo e um arranjo de cordas chamaram a atenção tanto pela beleza quanto pela simplicidade. Nada de virtuosismo, tudo de feeling. E quando tudo parecia estável, os instrumentistas começaram a improvisar e brincar com a música de uma maneira totalmente vanguardista, com pausas inusitadas e notas fora da escala. Foi o suficiente para eu me interessar e deixar cativar pela banda, o Penguin Cafe Orchestra.

Trata-se de um projeto de um violonista clássico e arranjador chamado Simon Jeffes (morto em 1997 de câncer), o principal mentor e compositor do quarteto completado por Helen Leibmann (violoncelo), Steve Nye (piano elétrico) e Gavin Wright (violino). Segundo o próprio Jeffes, o objetivo do projeto é fugir da rigidez da música clássica e das limitações do rock and roll, criando um híbrido vívido e interessante. E ele conseguiu isso logo no debut, Music From The Penguin Cafe, de 1976.

A primeira música já é uma das melhores do disco e, talvez por saber disso, Jeffes a batizou de Penguin Cafe Single. Um tema alegre e com pegada de trilha sonora, com uma melodia muito marcante e arranjo impecável. A quebra que ocorre no meio da música é inexplicável e ao mesmo tempo confortante: é ótimo escutar uma música que consegue nos surpreender, mesmo tendo sido gravada há quase 35 anos.

Zopf é uma peça composta de 7 partes pequenas e é, certamente, a parte mais experimental do disco - tanto que Jeffes não se limitou ao quarteto e convidou outros músicos para participarem. São tantos momentos distintos e peculiares que as partes são faixas separadas nas versões em CD. Passamos da introdução cartunesca de From The Colonies para a inusitadíssima In A Sydney Motel, com seu toque de canto religioso oriental (um dos pouquíssimos momentos cantados do álbum). Isso sem contar a profunda Surface Tension (paradoxo não-intencional), a maluquíssima Milk, o toque de cantata de Coronation, a felicíssima Giles Farnaby's Dream e a sci-fi Pigtail.

E finalmente chega a música que me levou ao Penguin Cafe Orchestra. Quando tudo indica que o álbum vai caminhar para o avantgarde total, começa The Sound Of Someone You Love Who's Going Away And It Doesn't Matter. Tanto o título quanto a música são longos, mas os quase 12 minutos (!) são tão belos que passam rapidamente. São variações dos demais intrumentos sobre o tema que Jeffes dedilha em sua guitarra, criando nuances e crescendos belíssimos. Difícil não se emocionar e não se impressionar com a quebra já citada anteriormente nesta resenha.

Hugebaby é mais uma faixa memorável, com seu clima sombrio e, ainda assim, belíssimo. Aliás, a execução dos instrumentos é algo muito peculiar pelo álbum inteiro. Não temos um disco impecável aqui. Existem alguns errinhos muito perceptíveis em alguns momentos, mas isso não tira o brilho do trabalho. Pelo contrário - adicionam uma crueza e uma legitimidade que dão vida e autenticidade às músicas.

A discreta Chartered Flight fecha este belíssimo debut de uma banda muito peculiar, que infelizmente é praticamente desconhecida aqui no Brasil.

Recomendadíssimo.

Tracklist:
1. Penguin Cafe Single
2. Zopf
    a. From The Colonies
    b. In A Sydney Motel
    c. Surface Tension
    d. Milk
    e. Coronation
    f. Giles Farnaby's Dream
    g. Pigtail
3. The Sound Of Someone You Love Who's Going Away And It Doesn't Matter
4. Hugebaby
5. Chartered Flight

quarta-feira, 7 de julho de 2010

Banda: Loituma; Álbum: Things Of Beauty




Banda: Loituma

Álbum: Things Of Beauty
Ano: 1997
Gênero: Folk Finlandês

Se você navega na internet e tem acesso a vídeos e animações, muito provavelmente, alguma vez, em algum lugar, já trombou com isso:



Por algum motivo, este vídeo (originalmente uma animação em flash disponível neste site) fez um sucesso absurdo na internet no ano de 2006. Essa combinação de uma personagem de anime (Orihime Inoue, do desenho Bleach) girando um aipo ao som de uma canção alegre com uma letra indecifrável foi vista por milhões de internautas ao redor do mundo, e gerou muitos e muitos vídeos de paródias e referências, como todo fenômeno da internet. E também fez o mundo se perguntar "de onde veio essa música?".

Quem deu uma pesquisadinha chegou em um quarteto finlandês chamado Loituma.


O vídeo, conhecido como Leekspin ou até Loituma Girl alavancou a popularidade da banda ao redor do mundo. Mas, como todo fenômeno de internet, o sucesso instantâneo desaparece tão rapidamente quanto surge, e pouca gente conhece a obra do Loituma além da música do vídeo, um trecho em looping da música Ievan Polkka.


Mas eu fui atrás e cheguei no primeiro álbum da banda: Things Of Beauty, de 1998 (lançado como Loituma em 1995, na Finlândia). Mas antes, como é de costume, vamos falar um pouco sobre a banda.


Originalmente, em 1989, o Loituma era um sexteto chamado Jäykää Leipä (que significa "pão duro", em sentido literal) nascido no departamento de música folk do conservatório Sibelius-Akatemia, em Helsinki, capital da Finlândia. O sexteto era formado por Sari Kauranen, Anita Lehtola-Tollin, Timo Väänänen, Hanni-Mari Autere, Sanna Kurki-Suonio e Tellu Paulasto. Porém, Kurki-Suonio e Paulasto deixaram a banda, que mudou seu nome para Loituma e virou um quarteto.


As músicas do Loituma, quando não são compostas por eles próprios, são versões totalmente arranjadas por eles de músicas tradicionais do folclore finlandês. Porém, muitos dos arranjos fogem daquilo que é considerado na Finlândia como música tradicional, apesar do instrumento chave da banda ser mais do que arcaico: o kantele.



Esse instrumento, uma mistura de harpa com aquelas "cítaras" que alguns ambulantes brasileiros vendiam há alguns anos (uma versão muito simplificada de um instrumento chamado zither) é a base da música do Loituma. Todos os membros tocam ele ou uma variação, e muitas das músicas contam apenas com ele além das vozes.

A música de abertura é Eriskummainen Kantele (O Kantele Caprichoso) e dá uma idéia do que vem pela frente, apesar de ser incrivelmente simples musicalmente. Uma melodia simples e medievalesca em um crescendo, inicialmente vocalizada e posteriormente adquirindo corpo com letra e harmonias.

A onírica Kultaansa Ikävöivä (Lá Está Minha Amante) é uma composição de Timo Väänänen. É tão pacífica (pelo menos a melodia unitonal - fico devendo sobre a letra) que lembra um mantra e poderia facilmente estar, musicalmente falando, no álbum Chant And Be Happy, produzido por George Harrison e já resenhado aqui. Um belíssimo momento do disco.

Viimesen Kerran (A Última Vez) é uma bela demonstração da beleza das vozes femininas do Loituma. Uma faixa quase acapella e repleta de harmonias bonitas que só não se destaca mais por ser acompanhada daquela que, na minha opinião, é a mais bonita do disco.

Minuet and Polska (Minueto e Polca) tem mais de sete minutos e é, na verdade, duas músicas em uma. Após uma longa introdução no kantele, duas vozes entram em uma belíssima vocalização que se entrelaça impecavelmente durante o restante da música, sem letra alguma. Inesperadamente, o tom melancólico e triste da música vira uma polca (como o próprio nome anuncia) e as mesmas duas vozes seguem mostrando beleza e desenvoltura. Facilmente uma das melhores faixas do álbum.

Kun Mun Kultani Tulisi (Sentindo Falta Dele) é uma faixa triste (como o nome sugere, novamente) porém belíssima. Tudo o que faz do Loituma uma banda notável está aqui: a impecável execução do kantele, as harmonias vocais, o tom medieval.

Após a belíssima instrumental Valamon Kirkonkellot (Os Sinos do Monastério de Valamo) temos uma surpresa interessante com Ai Ai Taas Sattuu (Ai Ai, Dói Novamente). Uma canção quase infantil muito bem arranjada pelo Loituma. Pareceria uma cantiga de roda se não fossem as harmonias vocais que se desenrolam a partir das vozes em uníssono. Bela música.

Após o clima infantil somos surpreendidos com a tensíssima Suo (O Pântano). Música com clima pesado e muito carregado. Poderia facilmente ser trilha sonora de algum filme de suspense. Outra ótima canção.

Kolme Kaunista (Três Coisas da Beleza) é alegre e tem um tom quase épico. É mais uma composta por um membro do Loituma, desta vez por Sari Kauranen. O começo engana e  sugere uma canção minimalista, mas o acréscimo de novas vozes dá um tom grandioso à canção.

E eis que chega a já comentada Ievan Polkka (A Polca de Ieva). A única canção totalmente acapella do álbum, conta com os quatro membros cantando e vocalizando uma melodia animada e tradicional na Finlândia. A melodia animada de letra alegre é tão cativante que, como citado no início do post, até inspirou o criador do Leekspin a pegar a parte do meio - que não tem letra alguma, e sim improvisos vocais de Hanni-Mari Autere - e deixar em looping.

O que é tão especial em Ievan Polkka? Eu diria (minha opinião, que fique bem claro) que é o arranjo e a interpretação do Loituma. Ela ficou solta, alegre e cativante, e é muito difícil não se animar com essa polca tão feliz.

É um belo disco. Recomendadíssimo.


Tracklist:

1. Eriskummainen Kantele (O Kantele Caprichoso)
2. 
Kultaansa Ikävöivä (Lá Está Minha Amante)
3. 
Viimesen Kerran (A Última Vez)
4. 
Minuet and Polska (Minueto e Polca)
5. 
Kun Mun Kultani Tulisi (Sentindo Falta Dele)
6. 
Valamon Kirkonkellot (Os Sinos do Monastério de Valamo)
7. 
Ai Ai Taas Sattuu (Ai Ai, Dói Novamente)
8. 
Suo (O Pântano)
9. 
Kolme Kaunista (Três Coisas da Beleza)
10. 
Ievan Polkka (A Polca de Ieva)


Abaixo, como não poderia de ser, um vídeo do Loituma interpretando Ievan Polkka ao vivo:

sexta-feira, 21 de maio de 2010

Banda: Morphine; Álbum: Cure For Pain


Banda: Morphine
Álbum: Cure For Pain
Ano: 1993
Gênero: Rock Alternativo

Já fazia um tempo que eu estava pra postar uma resenha de um álbum dessa banda espetacular e desconhecida por muitos, o Morphine, mas sempre acabava esquecendo. Agora aqui está, sem mais delongas.

O Morphine era uma banda peculiar em todos os aspectos: um trio formado por Mark Sandman (vocal/baixo), Dana Colley (saxofone barítono/tenor) e, a partir do disco aqui resenhado, Billy Conway (bateria e percussão). Anteriormente, o lugar de Conway era ocupado por Jerome Dupree.

Um power trio sem guitarra já é algo muito incomum. Adicione isso ao fato de Sandman tocar um baixo de duas cordas com um slide (aquele acessório muito usado por guitarristas de blues, principalmente) e de, em algumas vezes, Colley tocar dois saxofones ao mesmo tempo (como este velhinho épico neste vídeo aqui). Não tem como a música ser mais do mesmo.

O debut do Morphine foi Good, lançado em 1992, e mostrava muito bem ao que a banda veio: uma música criativa e inteligente, que não se doma a um estilo único. Além disso, a música combina muito com o nome da banda. Tem um je ne sais quoi de chapante na música do Morphine.

Apesar de Good ser um bom debut, a banda evoluiu muito no álbum aqui resenhado. Cure For Pain foi lançado apenas um ano depois e mostra uma banda mais madura, com maior domínio sobre as possibilidades de composição para os três (quatro, contando o vocal) instrumentos usados.

Após a pequena introdução de Dawna, um curto solo de saxofone, o Morphine já entrega uma das melhores faixas do álbum: Buena. A introdução no baixo de Sandman já mostra todo o groove da música, e logo no começo do álbum já esquecemos que o Morphine não usa guitarras simplesmente porque elas não fazem falta aqui. O saxofone de Colley cumpre muito bem esse papel e, de quebra, ainda dá um som único à banda.

O disco altera muitos humores. Temos a profunda I'm Free Now, com sua linha de saxofone simples e bonita; All Wrong, com sua levada mais animada, ótima para dirigir e a belíssima balada Candy, com seu toque de soul e uma letra extremamente romântica. Um dos melhores momentos do álbum:

Candy asked me if she died if I could go on
Of course I said I couldn't and of course we knew that's wrong
But Candy, I said, Candy, no, you can't do that to me
Because you love me way too much for you to ever leave

Na língua de Camões:

Candy me perguntou se, se ela morresse, eu conseguiria continuar
É claro que eu disse que não poderia e é claro que ambos sabíamos que estava errado
Mas Candy, eu disse, Candy, não, você não pode fazer isso comigo
Porque você me ama demais para algum dia me deixar

Toda a doçura de Candy fica para trás na incrível A Head With Wings, com groove até o último fio de cabelo. Mais uma vez o destaque é o ótimo trabalho de sax de Colley.

O leitor que escutasse o álbum até aqui e depois escutasse In Spite Of Me ficaria, no mínimo, puto. "Como você me fala que só tem baixo, bateria e saxofone se isso não tem nada disso?". Pois é, uma música com violão e bandolim (tocado pelo músico Jimmy Ryan) em pleno Cure For Pain. Surpreendente ou não?

Mas como o Morphine gosta de surpreender ainda mais, depois vem a paulada Thursday, cheia de texturas e saxofones. Em alguns momentos remete até ao John Zorn (que, caso você não conheça, clique aqui ou aqui pra ter uma idéia do quanto esse cara é peculiar).

A faixa título tem uma levada bem simples, que lembra um pouco Waiting For My Ruca, do Sublime (ou é muita viagem minha?), mas não se destaca do resto do álbum (apesar de não ser ruim de maneira alguma). Mary Won't You Call My Name tem uma levada de bluegrass, com Sandman tocando violão além do habitual baixo. Certamente uma das mais originais do álbum.

Let's Take A Trip Together cumpre o que propõe. Incrivelmente viajante, tem até órgão (tocado por Sandman) e um climão de dub, apesar de não ser um. Sheila é um dos momentos menos inspirados do álbum, e a faixa de encerramento, Miles Davis' Funeral, é uma pequena faixa instrumental melancólica só para encerrar.

Cure For Pain é um belíssimo álbum e certamente o álbum certo para quem quer conhecer esta banda tão peculiar, que infelizmente teve um fim prematuro e súbito quando Mark Sandman faleceu em pleno palco de ataque cardíaco, em 1999, aos 46 anos.

Recomendadíssimo.

Tracklist:
  1. "Dawna" - 0:44
  2. "Buena" - 3:19
  3. "I'm Free Now" - 3:24
  4. "All Wrong" - 3:40
  5. "Candy" - 3:14
  6. "A Head with Wings" - 3:39
  7. "In Spite of Me" - 2:34
  8. "Thursday" - 3:26
  9. "Cure for Pain" - 3:13
  10. "Mary Won't You Call My Name?" - 2:29
  11. "Let's Take a Trip Together" - 2:59
  12. "Sheila" - 2:49
  13. "Miles Davis' Funeral" - 1:41

Abaixo, confira o Morphine tocando Buena ao vivo:

segunda-feira, 10 de maio de 2010

Banda: Tool; Álbum: Ænima (ou Aenima)


Banda: Tool
Álbum: Ænima
Ano: 1996
Gênero: Metal Alternativo

Confesso que fiquei muito receoso de resenhar aqui, num blog de música "underground", um álbum de uma banda tão grande quanto o Tool, que já vendeu muitos milhões de discos e ganhou três Grammy Awards. Porém, curiosamente, é muito difícil encontrar quem conheça a banda aqui no Brasil além do comum "já ouvi falar", portanto nada mais justo que resenhar este álbum realmente marcante, o Ænima. Mas vamos falar um pouco sobre a banda antes, para quem não conhece.

A primeira formação do Tool gravou seu primeiro EP, Opiate, no começo de 1992. Apesar de já ser bem diferente do resto das bandas do circuito, o som tinha mais influências de metal e era mais agressivo. O EP foi um sucesso, chegou a ganhar disco de platina, e no ano seguinte o Tool já lançou seu primeiro álbum completo, o Undertow.

O álbum já chegou causando controvérsia. O encarte trazia fotos de uma mulher obesa nua, um homem nu e da própria banda com pinos na cabeça (além da capa, que trazia algo semelhante a uma costela). Algumas lojas censuraram o encarte, e o Tool mudou a capa para um código de barras enorme sobre o fundo branco e anexou a seguinte nota:

Nós notamos recentemente que muitas das lojas em nosso país legal e mente aberta não iriam disponibilizar o Undertow por causa de seu encarte explícito. Embora a gente odeie ser censurado, nós queremos seu dinheiro nós ainda queremos que você escute nossa música, então removemos ele. Entretanto, ele está disponível para você sem custo adicional. Preencha o formulário, enfie ele em um envelope, mande para nós e nós enviaremos o encarte original. Com amor, Tool.

Undertow foi muito bem recebido, e tem algumas das músicas mais conhecidas do Tool, como Prison Sex e Sober, uma das minhas preferidas da banda.

Nessa altura, a banda de quatro integrantes contava com o vocalista Maynard James Keenan, o guitarrista Adam Jones, o baixista Paul D'Amour e o baterista Danny Carey. Entretanto, D'Amour aparece somente nos dois primeiros trabalhos da banda, e saiu em 1995 para se dedicar a novos projetos. Em seu lugar entrou Justin Chancellor, que está na banda até hoje.

Foram três anos até que um novo álbum do Tool chegasse às lojas, e em 1996 Ænima foi lançado.

Quando uma banda faz um debut muito bom, cria-se muita expectativa ao redor do segundo álbum. "A banda vai conseguir manter a qualidade? Terão mudado muito o estilo? ", etc. As respostas são, ao meu ver, gritantes: o Tool melhorou muito em seu segundo álbum.

Ænima é um trocadilho envolvendo as palavras anima - um conceito da psicologia Jungiana que se refere ao inconsciente feminino do homem ou ao masculino da mulher - e enema, um procedimento médico (ou erótico, para alguns fetichistas) de lavagem intestinal.

O álbum é dedicado ao comediante, então recém falecido, Bill Hicks, que já havia aberto alguns shows do Tool com seu ato de stand up. Dizem que, em certa ocasião, Hicks pediu a uma platéia de milhares de pessoas que o ajudassem a procurar sua lente de contato, no que, para sua supresa, foi atendido. Existem, inclusive, algumas referências diretas a piadas de Hicks no álbum. Mais para frente digo onde estão.

Stinkfist é uma ótima faixa de abertura: pesada, com groove e com uma letra sobre fist fuck - o infame sexo com os punhos. Segundo a banda, também é uma metáfora sobre o ponto em que chegou a nossa apatia: apenas algo muito extremo nos surpreende. O  primeiro refrão, por exemplo, é genial:

Fingers deep inside the borderline
Show me that you love me and that we belong together
Relax, turn around and take my hand

Ou seja:

Dedos bem além das bordas
Mostre-me que você me ama e que devemos estar juntos
Relaxe, dê meia-volta e pegue (aceite) minha mão

A segunda música, Eulogy, tem uma introdução de mais de dois minutos, outro ponto muito marcante em várias músicas dos Tools: as longas introduções cheias de texturas. A letra é pesadíssima, uma eulogia (aquelas palavras que dizemos sobre alguém que acabou de falecer) agressivíssima a alguém que "não teve medo de mentir".

O legal das músicas do Tool é como elas variam dentro delas mesmas. Dentro de uma mesma música eles conseguem criar diversos climas e intensidades,variando muito os compassos e as harmonias. Os riffs também são um show à parte.

Um recurso peculiar  que o Tool usou à exaustão neste álbum são os fillers, pequenos interlúdios de curta duração que servem apenas para ligar uma faixa à outra. Alguns são muito interessantes, como A Message To Henry Manback. Sobre um piano muito lento, tocando uma melodia muito melancólica, uma voz ao telefone ameaça um homem - supostamente o tal Henry Manback - em inglês e italiano. A interpretação de Maynard é impagável.

Hooker With A Penis é uma das minhas faixas favoritas, tanto letra quanto música. A música é pesadíssima, arrastada, com um vocal raivoso de Maynard, e a letra é, no mínimo, interessante. Começa assim:

I met a boy, wearing Vans, 501s
And a dope beastie-tee, nipple rings,
New tattoos that claim that he was OGT,
Back in '92, from the first EP.

And in between sips of Coke
He told me that he thought we were sellin' out,
Layin' down, suckin' up to the man.

Well now I've got some advice for you, little buddy.
Before you point your finger you should know that I'm the man,
And if I'm the man, then you're the man, and he's the man as well
So you can point that fuckin' finger up your ass

Em português:

Eu conheci um cara
Usando vans, 501s
E uma camiseta chapada dos Beastie Boys, piercings nos mamilos
Novas tatuagens e afirmava ser OGT
De 92, do primeiro EP
E entre goles de coca-cola
Ele me disse que achava que estávamos no vendendo
Nos deitando, "puxando o saco" do "cara"

Bom, agora eu tenho um conselho pra você, amiguinho
Antes de você apontar seu dedo você devia saber que eu sou o cara
Se eu sou o cara, então você é o cara, e ele é o cara também
Então você pode apontar essa porra de dedo pra sua bunda

Só pra efeito de esclarecimento: Vans é uma marca de roupas e calçados (neste caso, tênis), 501 é um tipo de calça jeans e OGT é a sigla para original gangster Tool, ou seja, fãs do Tool que gostam apenas do primeiro EP, Opiate.

Fica muito clara a posição do Tool a respeito das pessoas que afirmam que as bandas "se vendem". Mais pra frente, ele é mais explícito ainda:

All you know about me is what I've sold you,
Dumb fuck.
I sold out long before you ever even heard my name.
I sold my soul to make a record,
Dip shit,
And then you bought one.

Ou seja:

Tudo o que você sabe sobre mim é o que eu te vendi,
Imbecil.
Eu me vendi muito antes de você ouvir meu nome.
Eu vendi minha alma para gravar um disco,
Escroto,
E então você comprou um.

Então vem outro filler divertido, Intermission (uma homenagem clara aos ingleses do Monty Python e ao filme Em Busca do Cálice Sagrado, onde, no meio de uma cena completamente aletória, eles colocam, também de maneira aleatória, a palavra Intermission - intervalo - por cerca de 5 segundos ao som de uma música animada tocada ao teclado). A faixa do Tool remete, ao mesmo tempo, à música tocada no filme e à música que vem a seguir no álbum, Jimmy - outro ponto alto, com um ótimo riff de abertura e clima sombrio.

Mas o melhor dos fillers é, certamente, Die Eier Von Satan. Se você não conhece, por favor, confira pelo menos um bom trecho abaixo:




O que parece? Certamente remete a um discurso nazista ou algo do tipo. Mas é apenas uma receita de biscoitos lida por Maynard e pelo alemão Marko Fox para enganar o ouvinte desavisado. Genial o som da platéia eufórica após o grito de UND KEINE EIER!, que significa  apenas "e sem ovos!".

O grande ponto alto do disco na minha opinião é a faixa quase-título Ænema. Essa foi a música que me fez buscar mais do Tool e até hoje é uma das que mais me aptecem. A letra é baseada em uma peça de stand up comedy do já citado Bill Hicks: Arizona Bay. Nela, Hicks falava sobre como o mundo ficaria melhor se a cidade de Los Angeles fosse engolida pelo mar juntamente com "os shows horríveis e os idiotas gritando ao vento", resultando na fictícia baía do Arizona. O Tool colocou a idéia toda na música, resultando em uma bela homenagem ao falecido comediante. Além disso, no meio da música, Maynard manda diversos estereótipos se foderem, incluindo os "metidos a gangsters", "bandas de rock boazinhas" e L. Ron Hubbard, o pai da Cientologia.

A última música do disco, Third Eye, começa com um sample de Hicks e seu sketch "drugs and music".

"Eu acho que as drogas fizeram algumas coisas boas por nós, eu realmente acho.  E se você não acredita que as drogas fizeram algumas coisas boas por nós, faça-me um favor: vá pra casa hoje à noite, pegue todos os seus álbuns, todas as suas fitas, todos os seus CDs e queime. Porque quer saber? Os músicos que fizeram toda essa música ótima e melhoraram suas vidas no passar dos anos... muuuuuito chapados de drogas".

Essa é apenas a introdução para um épico de mais de 13 minutos no melhor estilo do Tool. Guitarras pesadas, diversas texturas durante a música toda e extensas passagens instrumentais.

Ænima é um dos melhores álbuns lançados nos anos 90 pra quem gosta de música bem executada e criativa.

Recomendadíssimo.

Tracklist:
  1. Stinkfist
  2. Eulogy
  3. H.
  4. Useful Idiot
  5. Forty Six & 2
  6. Message to Harry Manback
  7. Hooker with a Penis
  8. Intermission
  9. Jimmy
  10. Die Eier von Satan
  11. Pushit
  12. Cesaro Summability
  13. Ænema
  14. (-) Ions
  15. Third Eye

Abaixo, o clip de Ænema: