quarta-feira, 4 de março de 2015

Artista: Shuggie Otis; Álbum: Inspiration Information

Artista: Shuggie Otis
Álbum: Inspiration Information
Ano: 1974
Gênero: Soul; R&B; Funk

Os anos 70 são, muito provavelmente, a minha década favorita na história da música contemporânea. É quase impossível ser justo ao apontar os principais álbuns e protagonistas, pois são tantos e de tantos estilos e lugares do mundo que é quase certo que alguém ficaria de fora. Só aqui no blog, já resenhei pelo menos uma dezena de álbuns setentistas dos mais diversos estilos e lugares (como Brasil, Portugal, Hungria e Turquia) e, ainda assim, sempre tem algum tesouro para ser descoberto.

Dito isso, falemos sobre o talentosíssimo Shuggie Otis. Nascido no final de 1953, é filho de Johnny Otis, um músico e empreendedor bastante importante na história do R&B (ele foi, por exemplo, o descobridor de Etta James e participou de uma porção de orquestras). Seu nome artístico é um diminutivo de sugar (açúcar), escolhido carinhosamente por sua mãe ainda em sua infância. Começou a tocar guitarra aos dois anos e aos doze já tocava na orquestra do pai, usando um bigode falso e óculos escuros para tocar até altas horas da noite.

Embora tivesse sido criado na escola do R&B e do jazz - tendo, inclsive, feito importantes contatos em decorrência da participação nas bandas do pai -, Shuggie começou a se interessar pelo cenário empolgante do final dos anos 60 (com bandas como Jimi Hendrix e Sly and the Family Stone) e isso influenciou muito sua carreira como guitarrista e seu relacionamento com a música.

Em 1969, com apenas 15 anos, foi convidado por Al Kooper (um dos fundadores do Blood, Sweat & Tears) para gravar um álbum colaborativo chamado Kooper Session. Ainda nessa época, participou do álbum Hot Rats, de Frank Zappa, gravando nada menos que o baixo de Peaches In Regalia, um dos trabalhos instrumentais mais famosos de Zappa.


Mas o debut de Shuggie como compositor, Here Comes Shuggie Otis, é bem diferente de seus trabalhos colaborativos. Gravado e lançado em 1970 (ele tinha, então, entre 16 e 17 anos), conta com a participação de diversos músicos convidados - entre eles, seu pai, que também foi muito ativo nos arranjos. É um belo disco que já previa o estilo de Shuggie: discreto, cuidadoso e intimista de certa maneira, destacando-se mais pelos detalhes e pela sutileza do que pela potência.

No ano seguinte, Shuggie lançou Freedom Flight, outro disco sensacional que traz um Shuggie mais maduro, tocando diversos instrumentos e seu primeiro hit, por assim dizer, chamado Strawberry Letter 23 - o "por assim dizer" é porque a música estouraria apenas 6 anos depois e em outra versão, produzida por Quincy Jones e executada pelos The Brothers Johnson. Mas voltando a Freedom Flight, o álbum foi notmente produzido em parceria comtem seu pai e traz uma influência palpável dos discos de rock psicodélico do final dos anos 60, principalmente na produção. Além disso, traz como colaboradores músicos importantíssimos, como George Duke (então tecladista na banda de Zappa) e Aynsley Dunbar (também integrante da banda de Zappa, além de ter tocado com David Bowie, Lou Reed, Whitesnake, Journey, entre outros!).

Mas a masterpiece  de Shuggie - e, curiosamente, seu canto do cisne - estava por vir. Após três anos de gravação, finalmente Inspiration Information ficou pronto. A demora foi extremamente desgastante para a relação entre o músico e a gravadora Epic, e há quem diga que isso queimou bastante o nome do músico no mercado, mas ela teve um motivo: a produção do disco e todos os instrumentos, exceto os arranjos orquestrais, foram gravados por Shuggie Otis (não foi o primeiro nem o último álbum gravado dessa maneira - aí estão McCartney, debut do ex-Beatle Paul McCartney, e o debut auto-intitulado do Foo Fighters que não me deixam mentir). Um feito incrível para um músico de sua idade, principalmente levando em conta a qualidade demonstrada na execução e nos arranjos.

O único single do álbum foi justamente a faixa que abre e dá nome ao mesmo. Inspiration Information tem uma abertura belíssima, com a guitarra base no wah-wah servindo de cenário para as vocalizações, teclado e guitarras em dueto - tudo tocado por ele mesmo, lembre-se. Quando a voz suave de Shuggie anuncia "we had a rainy day", o groove toma conta e carrega o ouvinte. O arranjo é inteligentíssimo, com suas guitarras sobrepostas, os backing vocals e o teclado, mantendo o ritmo dançante sem se afastar da elegância da melodia. Grande abertura.

A balada Island Letter tem um clima etéreo, com o drum machine analógico dando as caras e dando um toque moderno e de bolero ao mesmo tempo. Além disso, a guitarra pulsante ao fundo, as orquestrações entrando no momento certo e as longas passagens instrumentais contribuem para o clima de sonho desta ótima faixa.

Sparkle City, por sua vez, traz uma pegada muito mais Stevie Wonder, com uma levada muito mais acentuada e marcada da guitarra. A introdução dura mais de dois minutos e só então a voz de Shuggie entra, cool e macia, para nos lembrar de sua preferência pela sutileza. O arranjo poderia ser de alguma música mais lenta do Jamiroquai, e é muito provável que os membros da banda tenham tirado bastante inspiração de Inspiration Information, se é que o leitor me permite o trocadilho.


Uma das minhas preferidas é Aht Uh Mi Hed, uma grafia alternativa para out of my head. A exemplo de Island Letter, é uma balada trazendo o drum machine analógico, mas esta tem uma melodia um pouco mais melancólica e memorável. O final da canção é belíssimo, com a intensificação do arranjo e a entrada das cordas.

Happy House é um filler de pouco mais de um minuto do qual não há muito a ser dito, mas este não é o caso de Rainy Day. Uma linda demonstração das habilidades de Shuggie como guitarrista e compositor, com um arranjo delicadíssimo e influenciado por jazz. Ideal para ser ouvida na chuva, como ele mesmo indicou no título.

Talvez a mais experimental do álbum seja XL-30, com seu compasso incomum e seus efeitos sonoros sobre o teclado que, nesta música, funciona quase como um drone. Fantasmagórica e interessante, talvez seja a faixa que dê ao ouvinte a dimensão mais apropriada da versatilidade de Shuggie Otis.

Pling! é quase um ambient, com sua levada tranquila, as improvisações no teclado e o recorrente "pling" do drum machine. Relaxante ao extremo e peculiarmente bela.

A faixa que encerra o álbum é Not Available. A exemplo das três faixas anteriores, é instrumental e focada nos criativos arranjos de Shuggie, trazendo mudanças de andamento, harmonias interessantíssimas de guitarra e fechando Inspiration Information com chave de ouro.

O álbum chegou a aparecer discretamente na lista da Billboard na época do lançamento, mas rapidamente sumiu e ficou praticamente esquecido. Depois disso, Shuggie nunca mais conseguiu lançar um álbum pela Epic ou qualquer outra gravadora. Segundo ele mesmo, "eu nunca parei de fazer música, mas pararam de me gravar". Não fosse David Byrne, frontman do Talking Heads, resgatar o vinil e providenciar o relançamento de Inspiration Information em CD em 2001, seria muito mais complicado encontrar este álbum (apesar de artistas como Prince e Lenny Kravitz citarem-no como uma importante influência.

Em 2013, Otis e a Sony relançaram Inspiration Information como um álbum duplo, e Shuggie saiu em turnê para promover o lançamento. Seus shows foram um sucesso de público e crítica.

Recomendadíssimo.

Tracklist:
1.  Inspiration Information
2. Island Letter
3. Sparkle City
4. Aht Uh Mi Hed
5. Happy House
6. Rainy Day
7. XL-30
8. Pling!
9. Not Available

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